Cada um tinha, sobre ele, ouvido uma história diferente: era um Conde arruinado que bebia para esquecer os faustos passados, era empregado numa livraria da Baixa e sofria de antigo amor infeliz, era alfarrabista ali mesmo no Carmo, mas eu, (na altura, batia todos os alfarrabistas do Bairro e arredores) nunca o vi em nenhum.
Certo, certo, era encontrá-lo, noite após noite, ano após ano, solitário na primeira mesa da Cervejaria da Trindade, com as longas barbas que foram passando do negro ao branco, primeiro salpicado, depois total, bebendo Sagres Preta, 3 garrafas de cada vez, que para ele a medida para a cerveja era o litro!
Nunca lhe soubemos o nome e era, para nós, o Barbas! Chegava cedo e bebia devagar, sempre só; no fim da noite, pagava e saía sem uma palavra, triste, deixando atrás de si a mesa repleta, onde já não cabiam mais “troféus”…. até amanhã…
Depois, num ano qualquer, todos percebemos que mudança maior se fazia: o Barbas alquebrou-se numa agonia sem fim e mesmo assim teimava em cumprir a sua própria lenda até ao dia em que não apareceu. Morreu! Dizem que morreu…
A Trindade morreu com ele.
Não se iludam os que pensam que a viram, viva e de boa saúde, ainda um dia destes, ou comeram lá um bife com um belo molhinho, pelo qual pagaram os olhos da cara, antes de serem enxotados como cães por uns empregados mal-encarados, que aquilo agora pertence à Portugália e não é para fazer sala!
Esta é a Trindade de hoje, até se pode “lá” ir sem passar pelo Inferno de estacionar no Bairro: sim, já se reproduziu, como a “mãe” Portugália e tem uma infame "filha" numa loja do Campo Pequeno.
A outra de que vos falo, a do Barbas, era uma cervejaria de Lisboa, para os lisboetas.
Não fazia parte de nenhum roteiro de agência de viagens; claro que dos velhos empregados que nós conhecíamos pelo nome – o Vicente era guarda-freios da Carris e fazia ali um biscate, todas as noites, com uns bigodes de meio metro – nenhum sonhava em saber falar inglês, o que, aliás, também era totalmente inútil: quem ia à Trindade era porque queria comer um bife com aquele incrível e inimitável molho e uma caneca, e para isso qualquer língua serve.
Se, ao menos, o molho tivesse sobrevivido…
Quando o bife custava vinte e cinco escudos (12,5cents!), mais vinte e cinco tostões se fosse com ovo, nós sempre apertados com as nossas magras mesadas estudantis, fazíamos a festa com uma “molheira”, batatas fritas, pão e uma imperial, tudo nem chegava a 10$00! E que festa! Perante aquele molho quem queria carne? Estava ali tudo o que importava. O Vicente, mal nos via, trazia logo a bebida, sem perguntar nada, depois era só saber se o molho era com carne…. ou sem!
O molho que hoje acompanha os maus bifes da Trindade é uma orgiazeca de gordura e Maizena com um sabor arrepiante a coisa instantânea, feito a metro e despejado por cima.
A Trindade perdeu a alma, ficou o zombie, foi-se o espírito.
Fico às vezes a pensar se, como num filme de terror de série B, o velho Barbas, ou Conde, alfarrabista ou livreiro triste, era afinal a alma da Trindade, entristecida por vislumbrar o seu pobre futuro. Porque, como é sabido, as almas tudo sabem…
Durante muitos anos, eu e outros amigos da velha Trindade, fomos experimentando em tentativas sem fim, pelo método infalível do erro corrigido, emular o molho da Trindade, o antigo claro. Com algumas dicas “assopradas” ao ouvido pelo Vicente, entre duas imperiais, conseguimos o que aqui fica e que é, seguramente, a melhor aproximação ao desaparecido “melhor molho de bifes do mundo”:
Ingredientes:
1 Kg de bifes de novilho
250g de Manteiga
2 colheres de sopa de Banha
2 colheres de sopa de alho esmagado (ou massa de alho)
2 folhas de louro
2 colheres de sopa de condimento de mostarda vulgar (não de Dijon)
1 Imperial Sagres (ou uma Mini)
1 café forte (bica)
1 pacote de natas (200ml)
3 gemas
Sal e pimenta
Preparação:
Bata os bifes com o martelo apropriado, deixando-os finos (isto é um bife de “cervejaria”). Tempere com um pouco de pimenta e sal, de um lado, e frite-os rapidamente em banha e lume forte, dos dois lados. Reserve.
Leve ao lume 125g da manteiga, a banha e o alho, até que fique castanha ( cor de couro) mas sem queimar. Adicione então a restante manteiga, o louro e a mostarda e deixe ferver, mexendo sempre com as varas. Ponha então a cerveja e deixe ferver cinco minutos para ter a certeza que evaporou o álcool antes de juntar as natas onde previamente bateu as gemas e a bica. Toda a operação é feita mexendo sempre com as varas, melhor duas pessoas.
Leve de novo ao lume, mexendo para homogeneizar, prove e tempere de sal e pimenta.
Junte os bifes e deixe que acabem de passar no molho, que os deve cobrir.
Sirva em frigideiras de barro ( ou de metal, como na Trindade), com um ovo estrelado em cima, nadando em molho e com batatas fritas em palitos finos, à parte.
sexta-feira, 12 de dezembro de 2008
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
9 comentários:
fico sempre deliciada ao ler as suas memórias.
quase que consigo sentir os aromas que descreve.
Gostei muito da história. Quanto aos bifes: estive a discutir as quantidades do molho agora mesmo com uma amiga e chegámos os dois à mesma conclusão - não dará molho a mais? A proporção dos ingredientes pareceu-nos bastante interessante, já a quantidade, talvez excessiva. Só posso dizer que fiquei com água na boca. Acho que do jantar de hoje não passa.
Olá Cupido,
Isto foi, muitas, muitas vezes testado! Não te deixes levar pela impressão, senão falta.
O volume total do molho são cerca de 7,5dl. Se tivermos em consideração que 1 kg de bifes dá para 5-6 pessoas, isso dá 1,3-1,5dl de molho por pessoa, ou seja, um copo pequeno! E,neste caso, o molho é a "estrela": o bife é para ficar a nadar!
Bom jantar!
Fui durante alguns anos um assíduo frequentador da Trindade. Muita cerveja e muitos bifes. Muito antes de saber que o colesterol existia. Mas recordo com saudade. Também algumas vezes frequentei a Portugália que nõ ficava atrás da Trindade.
Em janeiro passado visitei o Forum Montijo e comi um bife num boteco chamado Portugália e me disseram pertencer à original. Fiquei desiludido. É uma pálida imitação do antigo bife.
Posso dizer que acabei de fazer esta receita e ficou excepcional! Parecia que estava na Trindade ou numa Portugália a comer um bife (mas em condições).
Já agora, fritei batata doce e a conjugaçao de sabores foi excelente.
Obrigado pelas receitas que coloca neste blogue, 5*
Luís, que delícia,
Já tenho água na boca!
Isabel Rato
Também tenho saudades de um bom bife na Trindade, aqueles dias para mim eram de festa, adorava aquele molhinho e depois molhar com o pão, neste momento não deixam de ser saudades, já não encontro um bom bife em Lisboa, vou experimentar estar receita, já estou com água na boca.
Jocas
Muito obigado pela partilha de memorias, algo miuto interessante de se ler.
Aqui (em terras longinquas do Japão) é uma maneira de despertar memorias e (quase) sabores da Pátria-Mãe.
quando no verão passado, depois de quase 13 anos, fui á Portugalia, a original. Com ânceas daquele molho, que na minha memoria, era o melhor do mundo, tão desapontado fiquei com tudo. O esparregado, o molho, o serviço.
Obrigado por esta receita, espero que seja tão bom como as memorias o lembram!
Caro Luís Pontes:
O «Barbas» trabalhava, de facto, na Livraria Barateira, um pouco mais abaixo, do mesmo lado da R. Nova da Trindade. O 16C ficava mais ou menos em frente daquele troço de rua que liga à R. da Misericórdia e dá pelo nome de Largo da Trindade. Vendeu-me mais do que um livro. Cozia-se com as estantes, nos cantos mais discretos: lembro-me de o topar à esquerda da entrada — justamente, numa mesa perto desse canto —, a olhar para qualquer coisa e sem se dirigir ao cliente.
Saúde e bons molhos,
Ant.º Mouzinho
Enviar um comentário