Vi a Morte chegar e vencer, muitas vezes, era ainda uma criança.
Durante as sestas que os adultos teimavam em fazer numa pretensa solidariedade com os miúdos, estes claro que se escapuliam como podiam e o certo é que passávamos as horas abrasadoras do princípio da tarde de Armação de Pera, por ali, na rua que então era ainda mais deserta que o costume naqueles anos.
O lugar de encontro, que todos nós pressentíamos proibido e que, por isso mesmo, nunca era mencionado aos adultos, era o mercado da aldeia onde, fechadas as portas ao público pela hora de almoço, passava a actividade para uma sala nas traseiras onde, de porta aberta, se fazia a matança das reses que seriam vendidas no talho, no dia seguinte.
E que espectáculo era!
Num compartimento sinistro de paredes nuas, excepto as argolas de ferro onde estavam amarradas as reses condenadas à morte, uma vaca dia sim dia não, dois ou três porcos e sete ou oito carneiros e cabras, aguardando o momento em que eram arrastadas até ao centro da divisão onde, derrubadas de modo a ficarem com o pescoço perto de um grande ralo sem tampa que ali havia eram degoladas numa orgia vermelha pelo Senhor do Matadouro, umas a seguir às outras, ficando a morrer num chimfrim de gritos e esperneios cada vez mais fracos, até ao fim.
Nós, os miúdos machos, ríamos em pura bravata, para que ninguém se apercebesse do coração que nos batia descompassado ali mesmo atrás da boca, principalmente as miúdas que também iam e que funcionavam como o alvo das nossas másculas exibições mas que, hipócritas, fingiam tapar os olhos e davam gritinhos quando a faca entrava jugular adentro e o sangue golfava num ímpeto demoníaco, ralo abaixo.
A Morte vê-se nos olhos: no olhar enraivecido do porco, que sabe bem o que o espera e que urra ainda mal vê a faca fatal ao longe, no olhar choramingas e aparvalhado da vaca que pressente que algo está errado mas não sabe bem o quê, no olhar ausente e estúpido de ovelhas e cabras que não percebem nada e ficam a olhar o vazio com os olhos meio abertos, os conhecidos "olhos de carneiro mal-morto". Frangos e galinhas, já estão mortos e ainda voam sem cabeça...
Depois vinham mais facas e grandes serras, ganchos e machados e começava a verdadeira carnificina da esfola, das vísceras, das peles ensanguentadas, até tudo aquilo se transformar nas inocentes peças que iriam parar aos nossos pratos no dia seguinte.
Nós, os putos, embriagados por aquele cheiro doce e acre, sangue, urina, fezes e morte, íamos continuando a ver quem era o mais bravo que conseguia tocar nas tripas fumegantes, enquanto éramos afugentados pelo ali todo-poderoso, senhor da morte e da vida, o Senhor do Matadouro.
O Senhor do Matadouro era um caso de transfiguração e múltipla personalidade: de manhã ele era o afável Senhor do Talho, desdobrando-se em afabilidade entre iscas, bifes e costeletas que iam enchendo as cestas de compras das clientes; à tarde era o terrível assassino que já conhecemos; depois, à noite, era o Senhor Júlio, vizinho da casa ao lado da nossa, alugada à época, dono de um perdigueiro sem cauda e cor de chocolate, o Vaidoso, em cuja cozinha eu passava horas a ver a mulher, D. Mariana, a fazer grandes panelas de banha e torresmos, salsichas e carne para enchidos, que a salsicharia que fornecia o talho era ali na sua cozinha.
Era raro o dia em que não provássemos os petiscos que iam ser o jantar lá em casa. E que belos petiscos.
Com a D. Mariana aprendi sabores novos e inusitados, o polvo seco assado no lume, a rexama, os torresmos feitos ali todos os dias e comidos a ferver num bocadinho de pão, os figos assados e as Pataniscas de Sardinha.
À noite, no calor algarvio, vivia-se ali à porta.
A D. Mariana puxava um banquinho de madeira e ficava ali a fazer renda e a cavaquear com a minha mãe e outras vizinhas, ao fresco da noite, o Sr. Júlio brincava com um netito ainda bebé que ali vinha à noite e que ensaiava os primeiros passos pela mão do avô babado que só nós sabíamos que, no dia seguinte depois de almoço, se transmutaria, qual lobisomem, no terrível matador do mercado.
Ingredientes:
250g Farinha com fermento
2 Ovos
Sal e Pimenta
Salsa picada
Água
Sardinhas bem fritas, em pedaços
Preparação:
Frite bem as sardinhas até elas estarem bem secas e duras. Parta-as em pedaços e reserve.
Faça um polme com os restantes ingredientes, como foi dito aqui, bata bem até fazer bolhas à superfície, misture as sardinhas e frite em óleo quente.
quinta-feira, 12 de março de 2009
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6 comentários:
Hoje a história é surpreendentemente macabra (este não deve ser o adjectivo mais adequado, mas agora é o que me subiu às ideias), Luis!
Passando às sardinhas: é com ou sem espinhas?
Beijinhos.
O mundo da província, neste caso algarvio, era surpreendentemente duro e selvagem há uns meros 45 anos. Não sei se evoluímos ou se fomos domesticados e amolecidos. Francamente, não sei...
Isto era feito com petinga muito frita, ficava quase um torresmo.
Um dia destes faço e publico no Outras porque são umas pataniscas mesmo deliciosas (e fala um indefectível do bacalhau!)
Bela história (e acredito que essas pataniscas sejam muito boas). Fez-me lembrar uns bolinhos que a minha mãe fazia quando ainda havia peixeiras a vender de porta em porta e se compravam petingas muito pequenas que eram envolvidas num polme e fritas.
Saltei do seu outro blogue para este e surpresa, deliciei-me com as suas histórias e receitas.
Gosto da maneira como se expressa, lembra-me um pintor,usa as palavras com cor, emotividade, acção , e lendo está-se lá,sente-se lá,onde as suas histórias, memória , e paladares nos transportam.
Obrigada por essa partilha, enriquece.
Oh! Que sítio bonito "és"!
Vim aqui parar porque hoje vou fazer favas com chouriço ;)
Felicidades!
Andei à procura de uma receita de pataniscas de bacalhau, porque já não me lembrava como a minha mãe as fazia...
e eis que encontro o teu texto... fartei-me de rir, porque me traz à memória muitas histórias similares da minha infância.
Um bem haja pelos risos provocados... e pela receita, claro.
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