A Silvina, cujas feições eu já não recordo, ficou como o meu arquétipo da Brites, a célebre Padeira de Aljubarrota, a mulher-de-armas que, no meu imaginário de criança, tinha assado à traição os malvados espanhóis!
A Silvina usava o cabelo grisalho repuxado para trás num carrapito de aspecto pétreo e vinha às Quintas-Feiras, para lavar a roupa que, antes de máquinas e até de detergentes, era tarefa titânica a que se poupava assim a Virgínia que era a empregada de todos os dias.
A “lavagem da roupa” começava, na realidade, logo de véspera, com as operações de preparação da saponária, pela Virgínia ajudada pela minha mãe e pela Tia Lucinda, numa cerimónia que tinha para mim o cunho de magia propiciatória da grande festa da barrela do dia seguinte, toda força e cheiros e águas.
A saponária fazia-se numa grande panela que assumia para mim proporções ciclópicas, de facto era algo tão grande que eu cabia lá dentro, na pequenez dos meus 3 ou 4 anos.
Para dentro da grande panela ao lume, as facas afiadas iam desfiando finas lascas translúcidas e marmoreadas de sabão azul e branco que, a pouco e pouco se desfaziam numa agonia viscosa e fumegante, inundando a casa daquele cheiro a aldeia da roupa branca que hoje é tentado de novo nesses detergentes ditos “sabão Marselha”.
Durante toda a Quinta-Feira, até as cordas estarem cheias de roupa a secar, lá para a tardinha, o tanque da roupa permanecia destapado e a grande avenca cujo sítio era a cobertura de madeira do tanque, era mudada para a cozinha, onde aguardava a hora de voltar, por mais uma semana, a ser a rainha dos vasos de plantas daquela marquise.
Aquela Avenca tinha sido colhida do interior de um poço de Moita de Ferreiros, aldeia em que os meus pais haviam passado férias antes do meu nascimento e era a mais extraordinária que eu algum dia havia de conhecer.
Com as suas grandes frondes de feto de alguma floresta primordial, na ponta das finíssimas hastes negras que a deixavam ondular a qualquer brisa, a avenca transbordava do seu vaso numa enorme bola verde de onde, diariamente, a minha mãe ia retirando todas as “folhas” e pés que iam envelhecendo, para assim estimular a emissão de novos rebentos.
Tudo o se colhia desta avenca era guardado numa caixa de folha que fora de bolachas e que agora era a Caixa do Capilé. Depois, por alturas da Primavera, a minha mãe cortava rente toda a avenca, deixando quanto muito um escasso centímetro junto à terra, era o “corte à escovinha” e então era ver a maravilha de dezenas de rebentos que em poucos dias surgiam, quais esmeraldas peludas todas enroladas e que abriam em novas frondes, quase que se viam a crescer.
O material desse corte, junto ao que durante o ano tinha sido podado, era a matéria prima para a confecção do Capilé.
O Capilé é um xarope de caramelo aromatizado de limão e avenca que, depois de diluído em água gelada faz um refresco espantoso cuja composição, curiosamente, é a mesma da Coca-Cola. Mas só a composição, é claro; o sabor é incomparável! Fazia parte de uma trindade de xaropes/refresco muito comuns em qualquer café e nas casas particulares, Capilé, Groselha e Salsaparrilha.
Para mim, não havia nenhum que chegasse ao capilé, bebida preferida também pelo Eça para acompanhar o bife do Marrare.
Ao dar a sacramental volta pelos meandros virtuais, antes de me pôr a escrevinhar isto, qual não foi o meu espanto por ver que o meu querido capilé estava extinto: em toda a Web, além de gente que se chama ou alcunha Capilé, só há asneiras e confusão, a Bimby diz que capilé é mazagrin, ali que é refresco de café de cevada, o infame xarope de capilé Neto Costa a proclamar-se detentor da tradição…
Aqui fica, orgulhosamente só no universo, a receita do melhor capilé do mundo:
Ingredientes:
3 Kg de Açúcar Amarelo
Vidrado da casca de 3 Limões
Sumo de 2 Limões (facultativo)
50g de Avenca seca
1,5 L de Água do Luso
Preparação:
Passe a avenca seca por água fria para eliminar algum resto de pó, esporos ou terra e ferva-a por alguns minutos em Água de Luso. Deixe a infundir até arrefecer.
Toste o açúcar amarelo no forno (tem mesmo de ser “amarelo” pois o açúcar branco funde e queima sem tostar). Isto faz-se espalhando o açúcar no tabuleiro do forno e levando-o a tostar a superfície no grill ou na parte mais alta do forno.
De minutos a minutos, quando a superfície fica tostada e escura, mexe-se com um garfo de madeira ou espátula e volta ao forno até que todo o açúcar esteja castanho escuro, não só à superfície mas a totalidade.
Junte o açúcar tostado à infusão coada de avenca, mexendo sempre pois tende a fazer um bloco no fundo. Leve ao lume com o vidrado da casca de limão e, se gosta do travo ácido no refresco, com o sumo.
Deixe ferver em lume baixo por cinco minutos, engarrafe de imediato, a ferver, e rolhe bem.
Assim, com a ajuda da grande avenca, se fazia a meia dúzia de garrafas negras que se consumiam ao longo do ano.
Depois, apareceu o primeiro detergente em pó, o Tide!
O Tide (seguido do Omo, Juá e Ajax) representou uma mudança radical na vida das casas: acabaram-se as saponárias e as barrelas esfregadas, a Silvina continuava a vir às Quintas mas a “roupa” deixou de ser o espectáculo alquímico e suado que tinha sido até então.
Já dava tempo para uma pausa para ouvir o folhetim radiofónico, reivindicado na contratação por qualquer mulher-a-dias que se prezasse, uma história de faca-e-alguidar patrocinada pelo novel detergente, que fazia chorar as pedras da calçada e que ficou conhecida, precisamente, por A Coxinha do Tide!
A Silvina foi dispensada quando, lá para 1965, chegou enfim a máquina de lavar.
Numa das suas últimas idas à Quinta-Feira, nunca se soube como, o pacote do Tide “entornou-se” sobre a avenca que, apesar de todos os cuidados e lavagens, amareleceu e morreu dias depois, numa agonia química inesquecível.
Odiei (e acho que ainda odeio) a Silvina por isso, apaguei-lhe as feições da minha memória e assim permanecem, uma mancha branca com cabelo grisalho e carrapito apertado, a matar cobardemente a avenca do capilé.
Depois, até hoje, houve muitas avencas e capilés, mas nenhuma chegou em pujança e carisma à grande avenca do poço de Moita de Ferreiros.
Por vezes, quando não tenho a necessária, faço o capilé com Lúcia Lima.
Mas é outra coisa, claro.
quinta-feira, 27 de agosto de 2009
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12 comentários:
É incrível, eu achava que o capilé era uma bebida fresquinha feita com café...
Resta-me a consolação de ter conhecido uma avenca especial, colhida pela minha sogra, no Aqueduto.
Já lhe disse que adoro as suas histórias?
Beijinhos.
Desconhecia que o capilé era feito com avenca. A minha avó costumava fazer mas daquelas garrafas que se vendiam como as de groselha, nem sei se ainda há disso à venda.
As avencas lá por casa nunca se deram muito bem.
Anna: Não me diga que há avenca no Aqueduto?! Onde, onde?
Moira: Esse da sua avó é o tal Neto Costa a que eu chamo infame! Mas de facto não engana ninguém: tem lá escarrapachado no rótulo que é feito de açúcar, essencias e corado artificialmente.
O próprio nome "capilé" vem do nome científico da avenca, que é "capillaria", por causa das finíssimas hastes negras.
As avencas nunca tiveram grande vida lá em casa.TAlvez por gostarem de sítios bem frescos e a casa ter muitas janelas e elas habitarem nos seus parapeitos.
Mas desconhecia que o velhinho capilé cujo nome tantas vezes soou aos meus ouvidos em tempos passados fosse feito a partir desta flor.
Parece-me que na zona de Sintra elas se dão muito bem.
Adorei a história do ritual da lavagem da roupa em tempos passados.Recordo-me bem dessa transformação do são azul e branco. Odiava aquele cheiro.Mas ainda mais quando me mandavam esfregar a roupa na pedra do tanque e me diziam:"tem de ser mais esfregada.Não está bem lavada".
E eu lá continuava a esfregar não só a roupa mas as minhas mãos que, mesmo depois de muito bem lavadas ainda continuavam a dar-me uma comichão louca.
boa semana
As avencas, de folhinhas miúdinhas ou nem tanto são a minha planta preferida, embora nunca tenha tido "mão certa para elas", ou afogo-as ou mato-as à mingua de água. Tenho algumas neste momento, veremos se é desta que uma delas fica frondosa.
Capilé nunca bebi, nem do verdadeiro nem do outro. Estou a gatinhar no seu cantinho e estou a gostar muito.
Adorei as memórias.
Também as tenho relativas ao capilé. Bebia com gelo e umas gotas de sumo de limão. No entanto nunca bebi o xarope caseiro, pena minha, apenas o engarrafado do Altoviso.
Vou anotar para fazer um dia.
Fascinante...
Eu já sabia que o capilé se fazia com avenca mas muito obrigada pela receita.
A minha mãe também chamava "capilé" à bebida de café com casquinha de limão mas a coisa nunca me convenceu...
Obrigada pelo blog
Obrigada!Adoro Capilé e bebi há pouco tempo em Sintra.Pensava que era feito de cevada e caramelo!
Vou postar esta sua receita com o devido crédito,está bem?
Amei sua crônica, as lembranças da lavagem das roupas, até senti o cheiro do sabão... Apesar de morarmos bem longe um do outro( eu no Brasil), a minha avó era portuguesa e minhas lembranças de infância são um pouco 'lusas'. E quando li a palavra 'capilé' já me veio aquela onda de memória afetiva. Conhecia de nome, mas nunca tomei, nem sabia que era feito de folhas de avenca.
Aqui no Brasil há muitas avencas, lindas!! Mas principalmente quando as compramos... Depois vão definhando ao poucos nos vasos da cidade. A última que ganhei (estava linda)foi comida pelos meus gatos, impiedosamente... É, eles devem saber o sabor, aproximado, do capilé... Mas na Mata Atlântica lá estão elas, poderosas, lindas, delicadas, e agora sei, saborosas. Quando eu fizer um passeio pelas matas vou colher as folhas e galhos secos para tentar fazer o capilé. Mas o açúcar amarelo não sei se vou achar, nem mesmo sei se é de cana ou beterraba. Temos vários tipos de açúcar aqui, mas todos de cana. Existem os amarelados, tipo demerara ou orgânico, mas não sei se são os mesmos daí. Mas se pode tentar, não é?
Também gostei deste post porque, na verdade, adoro receitas esquecidas, aqueles sabores que não existem mais me trazem uma curiosidade incrível. Adoro velhos cadernos de cozinha, da avó, da bisavó ou da tataravó... Aqueles livros do começo do século passado. Aquelas técnicas ultrapassadas pelos modernos métodos, mas que davam um sabor diferente às comidas. Aqueles ingredientes esquecidos que nos salva da atual e pasteurizada comida (quer coisa mais triste do que ir a uma festa de aniversário e todos os doces serem à base de leite condensado? Até o recheio do bôlo!!). Gosto de experimentar as receitas antigas e seus modos de fazer para ver como era o sabor do produto final, aquele sabor e textura que ficaram esquecidos lá atrás, na memória do tempo.
Um abraço.
Mais vale tarde que nunca! Só hoje ter encontrado essas belas memórias de tempos passados. Deixando de lado a história da barrela, que, no entanto não me é de todo indiferente, foi um gosto encontrar a receita da maravilhosa bebida que as minhas tias faziam quando eu era pequena e de que havia sempre uma garrafa oferecida lá para casa. Não sei porquê, nunca a minha mãe se dedicou à confeção do capilé nem cuidou de registar o modo como se fazia. Eu que de tempos a tempos me recordava do seu singular sabor, desconhecia os seus segredos, a não ser que se fazia com avenca.
Agora que, com este calor, a minha planta teve a amabilidade de me presentear com algumas frondes secas, tratei finalmente de procurar o que fazer com elas! Espero ter êxito!
Um abraço e obrigada
Paula P.
Adoro a sua escrita e dou-lhe toda a razão.
Qualquer dia tem de ir à cata de bagas para fazer salsaparrilha.
Obrigada
Muito bem! Obrigado! Até que enfim alguém que conhece e sabe apreciar o capilé! Aliás, o nome da Avenca diz tudo: Adiantum capillus veneris, ou Cabelos de Vénus. Daí o nome capilé. É uma bebida maravilhosa. Em tempos idos cheguei a fazer capilé com o meu pai. Não era um capilé de xarope, era uma coisa mais prosaica. Deixávamos as ramas em água a largar a seiva, durante umas horas, e depois acrescentávamos açúcar. Se fosse acrescentada uma água com gás o gosto era muito parecido com o da coca cola, mas mais leve e de melhor sabor. Que bela crónica. A acrescentar às suas memórias: o cheiro do soalho limpo com aguarrás e encerado. Depois passava se uma polidora que parecia um carro de assalto, a seguir pelo corredor fora a girar as cerdas por baixo... Era uma festa...
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