quarta-feira, 9 de abril de 2008

Rojões (conserva)

Quando se fala de Rojões pode estar-se a falar do conhecido prato nortenho, com o sangue frito, a tripa enfarinhada etc. cujo expoente se come lá para Famalicão, ou então da conserva que, no Sul, fazia a carne da matança chegar para um ano inteiro.
É esta conserva, cuja execução é precursora dos modernos confitados, que se fazia uma vez por ano em minha casa. Ali, o intuito não era a conservação em si, desnecessária numa cidade, mas a obtenção do sabor incomparável que a carne toma após 6 meses ou até um ano de imersão na sua saborosíssima gordura e conservante.
Curiosamente, esta preparação não gera uma carne com grande quantidade de gordura. Pelo contrário, se houver algum cuidado no momento de comer, pode até constituir uma das formas mais "magras" de utilizar a carne do porco.


Ingredientes:

5 kg de perna de porco (lacão)
5 kg de banha em rama
2 cabeças de Alho
5 folhas de Louro
1 litro de vinho branco
1 copo de vinagre ou sumo de limão
50g de Pimentão Doce (ou 1 chávena de massa de pimentão)
Sal e Pimenta

Preparação:

Prepare a banha pelo processo indicado em Torresmos Soltos , mas não tempere os torresmos. Reserve a banha.
Corte o lacão em pedaços grandes como um punho fechado e ponha-os num alguidar.
Faça uma pasta com os alhos esmagados, sal e pimenta, pimentão e o vinagre ou sumo de limão e, depois da pasta feita e ligada, o louro em pedaços. Envolva a carne nesta pasta e deixe em repouso por 24 horas.
No dia seginte regue a carne com o vinho branco para lavar os temperos da vinha de alhos, limpe qualquer vestígio de tempero para não queimar e sele os pedaços de carne numa frigideira larga em pouca banha muito quente para que a selagem se dê rapidamente, deixando a carne completamente tostada por fora e completamente crua por dentro. Vá tirando os pedaços para uma panela funda à medida que vão ficando selados. Quando toda a carne estiver na panela, cubra-a com banha aquecida a 80ºC, e ponha-a no forno, também a 80ºC, durante 3-5 horas. No campo punha-se o tacho de barro no forno do pão depois da cozedura deste e ficava assim até ao dia seguinte. Este tempo de forno é muito variável e só a observação pode determinar quando está completo: a carne está perfeita quando ao carregar com um garfo sobre ela, se abre facilmente em fibras rosadas e tenríssimas, sinal que o "confitado" está pronto.
Retire a carne para o recipiente em que vai ficar conservada, tradicionalmente um alguidar de barro mas claro que pode ser outro recipiente fundo e largo qualquer. Arrume a carne de modo a ficar toda ao mesmo nível.
Ponha então ao lume a banha em que a carne esteve, adicione o vinho com os temperos e deixe ferver até que o vinho esteja evaporado. Este momento é crucial; quando o vinho se evapora totalmente, os temperos começam a fritar e a temperatura da banha a subir. Deve controlar atentamente para que estes resíduos fiquem castanhos mas nunca queimados, o que acontece quando a banha atinge cerca de 135ºC. Se não tiver termómetro, controle através da cor do molho do fundo.
Vaze então a banha sobre a carne, assim bem quente, bem como os resíduos dos temperos, que vão logo ao fundo, tendo o cuidado de assegurar que sobre toda a carne haja, pelo menos, 4-5 cm de banha. Deixe arrefer e solidificar a banha, que tomará uma bela cor alaranjada. Guarde por um mínimo de 6 meses num sítio fresco, mas não no frigorífico, antes de usar.
Quando for usar, retire uma parte da camada superior da banha para o lado, retire com uma colher os bocados de carne e sedimentos que quiser, e repare a ferida feita com a banha que reservou para o lado, sempre sem tocar com os dedos.
Aqueça os rojões numa frigideira tapada em lume muito suave e acompamhe com batatas novas cozidas com casca e grêlos cozidos. Se não quiser, ou não puder comer a banha, aqueça os rojões brevemente em micro-ondas e seque-os antes de comer.

Notas:

Este é um dos tais pratos em que o tempo é o cozinheiro principal e não há truque que o substitua. Dá algum trabalho na preparação, é coisa para um fim-de-semana inteiro, mas fica feito e dá para muitas refeições que ficam practicamente prontas com 6 meses ou até 1 ano de antecedência. Estou a consumir neste momento rojões que fiz há quase 2 anos e estão perfeitíssimos.
Pode utilizar, para além do lacão, qualquer outra carne magra do porco. Fica também muito bem a carne que se retira da pá (e é muito barata), os lombinhos, o lombo e o cachaço (fundo) com ou sem osso. Há uma variante alentejana destes rojões, mais rápida a fazer pois frita sem confitar e já está, que não usa vinho nem vinagre e que usa entremeada e toucinho em vez da carne magra. É chamada de Carne de Alguidar mas, na minha opinião, além da dose brutal de gordura não tem nem metade do encanto sápido dos irmãos mais magros, os Rojões.

5 comentários:

cupido disse...

Bem, esses rojões evocam alguns sabores da infância, embora sejam diferentes dos que comia (preparados pelo meu pai), em que se confitava perna, pá e entremeada, sendo o objectivo principal a obtenção da banha (a carne era separada entre os nacos grandes e ou couratos), fundamental numa zona onde não se produz azeite. Bela narrativa, de deixar água na boca e muita vontade de ir confitar uns pedaços de bácoro.

diogo disse...

Bendita a hora que comentou o blog da winnie . Só assim eu soube da sua existência . Não me sinto nem meio capaz de fazer uma coisa assim . Obrigado pela partilha . Os saberes antigos não se devem deixar morrer . Um abraço.

Suzana Parreira disse...

Olá Luís!

Devo dizer-lhe que o seu blog é na verdade serviço público! Obrigada pelo empenho e pelo registo - impecável, aliás - destas tradições.

Obrigada pela visita à minha cozinha e pelo simpátivo comentário. Garanto-lhe que se alguém está num patamar superior nas coisas das comidas é certamente o Luís. :-)

Eduardo Luz disse...

Luís, espetacular a descrição e o formato desta receita. Só os nomes dis ingredientes já seriam suficientes pra torná-la interessante. Não sei se aí o significado é o mesmo mas, aqui no Brasil rojão é o mesmo que fogos de artifício !

anna disse...

Ao ler a sua descrição até me dá pena de morar em Lisboa, alfacinha de gema, de 2ª geração...
Mas logo me passa, pois acho que não saberia viver noutro lugar...
Estes rojões são magnificos, mas gosto mesmo é da sua maneira de descrever as coisas.