domingo, 6 de julho de 2008

As Farinheiras da Tia Lucinda

Quando eu era miúdo tinha sempre essa benesse que hoje parece espantosa de quase quatro meses de férias. As aulas acabavam a 9 de Junho e só recomeçavam a 6 de Outubro. Era a festa das Férias Grandes, a começarem na Primavera e a terminarem no Outono!
Como o meu pai só tinha um mês, como toda a gente que trabalhava, normalmente o de Agosto, a miudagem partia logo para Armação de Pêra na companhia da Tia Lucinda, na realidade tia-avó e que vivia connosco, os meus pais iam lá ter em Agosto e depois passávamos o Setembro já na casa de Magoito.
Não é fácil imaginar o que eram umas férias no Algarve no início dos anos 60. Em Armação de Pêra, sítio apenas conhecido de alguns iniciados e que não era mencionado em muitos mapas, não havia na altura um único estabelecimento onde se pudesse dormir, nem farmácia, nem gasolina, havia um restaurante de praia, do Sr. Serol, um bar de praia, do Alvarinho, e se fosse preciso médico, chamava-se o Dr. Joãozinho, de Alcantarilha. Nós ficávamos numa casa de pescadores na Rua do Mar, cujo fim era a areia da praia e cujos donos se mudavam para as barracas das redes de pesca, durante os meses de Verão.
Em Setembro vinha a altura do mar forte e água fria do Magoito, a enrijar as carnes amolecidas dos calores algarvios. Depois da aventura do Algarve selvagem o Magoito era algo de diferente mas nem por isso muito mais civilizado. Sem estrada alcatroada, sem abastecimento de água e, a princípio, nem electricidade, esta aldeia quase às portas da capital era bem o exemplo do abandono a que o mundo rural estava votado naquela altura.
Mas para nós era um paraíso e, graças às eternas manhãs de nevoeiro daquela costa, havia todos os anos uma empresa fantástica, levada a cabo pela Tia Lucinda e colaborada por todos nós, os miúdos, e pelos amigos mais próximos a quem era concedido o privilégio de ajudar: O fabrico das Farinheiras da Tia Lucinda!
Viúva de um marinheiro que sempre acompanhou, a Tia Lucinda transportava consigo uma imensa bagagem adquirida pelos cantos do mundo onde viveu e, uma das muitíssimas coisas estranhas que sabia fazer era farinheiras. E especiais! Feitas em cada Verão, no Magoito, estas farinheiras duravam todo o ano, perfumando com o seu fumo a chaminé da casa de Lisboa, assim transfigurada como se de alguma casa rural se tratasse.
De sabor intenso e ácido, defumadas com louro e oliveira, são um dos sabores mais marcantes da minha memória de infância e faziam-se assim:

Ingredientes:

750g de Farinha de Trigo grossa
250g de Farinha de Milho
1 chávena de Banha de Porco derretida
4 colheres de sopa de Pimentão Doce
2 colheres de sopa de Massa de Pimentão
6 dentes de Alho, bem esmagados
Sumo de 2 Laranjas
1 golpe de Vinagre
Sal e Pimenta
Água
Tripa seca para enchidos

Preparação:

Misture num alguidar todos os ingredientes com a água necessária para que fique uma pasta mole, com a consistência de um polme grosso. Encha a tripa, previamente demolhada, de modo a ficar cheia só em dois terços do comprimento, vá atando as farinheiras com cordel, dobre e volte a atar os cordéis de cada ponta, um ao outro, fazendo assim a ferradura característica deste enchido.
Lave as farinheiras de algum resto que tenha ficado aderente por fora e pendure-as num pau, alinhadas mas não encostadas umas às outras. Faça um lume de carvão num sítio abrigado, pendure o pau das farinheiras sobre este lume mas afastado de modo a que não possam cozer, e ponha sobre as brasas ramos de loureiro molhados de modo a produzir bastante fumo, mas nunca chama, pelo que deverá ser uma operação vigiada em permanência. Após 2 ou 3 dias de fumo (ao todo 5-6 horas), as farinheiras podem acabar de secar ao Sol. Quando estiverem com a consistência correcta, esfregam-se com azeite e guardam-se até um ano. Se não quiser que acabem por secar demais pode congelá-las.