sábado, 13 de dezembro de 2008

EPÍLOGO

O Comidas Caseiras completa hoje o seu ano de existência!

Como livro de memórias que quis ser, e foi, teve o tamanho da memória que o sustentou e agora, naturalmente, chegou ao fim.

A todos os que, lendo-me, me acompanharam com o vosso apoio, comentários, críticas e amizade, o meu sincero agradecimento.

Deixarei o blog inactivo a partir de hoje, mas on-line por mais alguns meses, de modo a servir quem assim quiser.
Entretanto continuarei convosco atraves do "outras comidas".

Obrigado

FIM

O JANTAR DE NATAL

Mais do que estritamente pessoal, o Natal é uma aquisição da tradição familiar.
Construída de geração em geração, sempre evoluindo, esta tradição torna-se num emblema que, de algum modo, define aquela família.

Na minha família, como em todas as outras, temos o “nosso” Natal!

O dia 24 de Dezembro é privado de cada célula familiar mais pequena: em minha casa é um dia que começa logo de manhã com a preparação das diversas vitualhas que serão consumidas nesse dia e no seguinte: é tempo de acabar o dessalar do bacalhau, preparar as couves que o acompanharão à Consoada, rechear figos secos com nozes e amêndoas, por sua vez também descascadas na altura, cozer a abóbora para ter tempo escorrer, pôr o peru de molho com limão e laranja, embrulhar algum presente retardatário e pô-lo junto à árvore de Natal.

Com alguma pequena pausa para ver pela décima vez um Cirque du Soleil que a televisão teima em repetir a cada Natal, mas que se vê sempre com o mesmo prazer infantil, depressa chega a hora em que vai para o lume o Bacalhau da Consoada.

Ingredientes (por pessoa):

2 ovos
4 batatas médias
1 cebola
1 cenoura
Couve Portuguesa
Sal
2 postas de Bacalhau
Pimenta, alho e salsa, muito picados
Azeite extra-virgem e Vinagre de Vinho

Preparação:

Coza em água e sal os cinco primeiros ingredientes.
Introduza então, por cima, as postas de bacalhau e leve de novo ao lume.
Quando começar a levantar fervura, baixe o lume para o mínimo, de modo a que a fervura quase pare, e deixe assim por cinco minutos. Apague o lume e deixe tapado por mais cinco.

Tempere no prato com pimenta, alho e salsa, azeite e vinagre.

Entre a Consoada e a meia-noite é o reino dos doces!

Altura para as grandes fritadas natalícias: as Filhoses de Abóbora, os Sonhos, Coscorões, Rabanadas, Biscoitos da Gina, juntam-e ao Bolo Rei, de compra, ao Arroz Doce, às vezes Aletria, aos Pinhões, Tâmaras, Figos, Amêndoas, Broas Castelar, Passas, tudo o que, supostamente será consumido com Cacau Quente à meia-noite, depois das prendas, mas que fica sempre, intacto, para o dia seguinte.

No dia 25, ainda em minha casa, bem cedo, a família almoça Roupa Velha.

Ingredientes:

Sobras da Consoada ( Bacalhau, Batatas, Couve, Ovo)
Alho em fatias
Azeite
Pimenta

Preparação:

Frite o alho em azeite numa frigideira grande até começar a alourar.
Junte as sobras (que se fizeram sobrar, claro, por isso 2 postas por pessoa!), partidas em pedaços e o peixe sem espinhas, envolva e deixe fritar em lume forte, voltando amiúde. Tempere com pimenta e sirva bem quente.

Depois do almoço começa o Natal da família alargada: é a partida para a casa dos meus pais, onde as várias famílias que nela nasceram se reúnem, uma vez por ano, para o Jantar de Natal.

Aqui, as tarefas são divididas: Como somos três, os irmãos, cada um dedica-se a uma parte do jantar; eu fico com o peru recheado, a minha irmã Teresa com os peixes e mariscos e a Isabel com tudo o que é doce.

Fazer o peru é algo que começou já dois dias antes, em minha casa, com a mortificação em água e sal e sumo de citrinos e com a preparação do recheio, de que a minha família come em quantidades prodigiosas.



Ingredientes (para um peru de 7 kg):

750g de carne de vaca
500g de perna de porco
400g de fígado de porco
400g de entremeada
250g de fígado de peru
6 Salsichas frescas
2 Chouriços de carne
125g de manteiga
1 Cebola grande
1 colher de sopa de açúcar
6 dentes de Alho
Sal, pimenta, salsa picada e noz moscada
Tosta ralada, clara.
Sumo de limão

Preparação:

Coza as carnes e enchidos por uma hora, na pressão, com pouca água, de modo a obter um caldo concentrado. Passe as carnes no moínho e reserve.

Refogue a cebola e os alhos na manteiga até alourarem e passe-os com a varinha, de modo a ficarem totalmente desfeitos.

Junte as carnes passadas, junte caldo da cozedura, o açúcar e envolva. Tempere com sal, pimenta, moscada e salsa.
Leve ao lume, mexendo sempre até começar a sair exuberante vapor.
Junte então tosta ralada, da mais clara, ou miolo de pão duro, e ligue o conjunto que deve ficar com uma consistência menos ligada e mais mole que picado para croquetes. No fim regue com sumo de limão e envolva bem.

Rechear um peru é, principalmente, um trabalho cirúrgico. Depois de encher completamente o interior do bicho, quer pela abertura abdominal, quer o “papo”, há que coser, pacientemente, todas as saídas, com auxílio de agulha cirúrgica e fio de algodão cru, usando retalhos suplementares de pele (costumo esfolar uma perna de peru, tempos antes, e guardar congelada a pele), pois é raro que a pele venha completa.

Depois é barrar todo o animal com uma mistura de margarina, sumo de limão, sal, alho em pó, pimenta e colorau, e pô-lo no forno até às 16.30, para comer às 9h.

A assadura começa por 15 minutos de forno muito quente (230ºC) passando depois para 4 horas de forno mínimo (130ºC) e um final de 15 minutos a 200ºC, para terminar o tostado da pele. Durante todo o processo o peru nunca deve ser espetado, de modo a não perder os sucos internos.

Tradicionalmente é acompanhado de Arroz Papal, uma espécie de arroz de manteiga que a minha irmã Teresa faz de maneira superior; visto de fora pode parecer apenas arroz muito cozido, mas na verdade é um sabor imprescindível ao nosso Natal familiar.

Tudo o resto é tradição, desde o sermos muitos, de todos os anos haver novidades quanto a novas presenças ou ausências, os peixes e mariscos da Teresa, as “babas” e “bavaroises” da Isabel, a algazarra geral, a segunda troca de prendas, depois a debandada até para o ano que vem, no Jantar de Natal!

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

A Alma da Trindade

Cada um tinha, sobre ele, ouvido uma história diferente: era um Conde arruinado que bebia para esquecer os faustos passados, era empregado numa livraria da Baixa e sofria de antigo amor infeliz, era alfarrabista ali mesmo no Carmo, mas eu, (na altura, batia todos os alfarrabistas do Bairro e arredores) nunca o vi em nenhum.
Certo, certo, era encontrá-lo, noite após noite, ano após ano, solitário na primeira mesa da Cervejaria da Trindade, com as longas barbas que foram passando do negro ao branco, primeiro salpicado, depois total, bebendo Sagres Preta, 3 garrafas de cada vez, que para ele a medida para a cerveja era o litro!
Nunca lhe soubemos o nome e era, para nós, o Barbas! Chegava cedo e bebia devagar, sempre só; no fim da noite, pagava e saía sem uma palavra, triste, deixando atrás de si a mesa repleta, onde já não cabiam mais “troféus”…. até amanhã…

Depois, num ano qualquer, todos percebemos que mudança maior se fazia: o Barbas alquebrou-se numa agonia sem fim e mesmo assim teimava em cumprir a sua própria lenda até ao dia em que não apareceu. Morreu! Dizem que morreu…

A Trindade morreu com ele.

Não se iludam os que pensam que a viram, viva e de boa saúde, ainda um dia destes, ou comeram lá um bife com um belo molhinho, pelo qual pagaram os olhos da cara, antes de serem enxotados como cães por uns empregados mal-encarados, que aquilo agora pertence à Portugália e não é para fazer sala!
Esta é a Trindade de hoje, até se pode “lá” ir sem passar pelo Inferno de estacionar no Bairro: sim, já se reproduziu, como a “mãe” Portugália e tem uma infame "filha" numa loja do Campo Pequeno.

A outra de que vos falo, a do Barbas, era uma cervejaria de Lisboa, para os lisboetas.

Não fazia parte de nenhum roteiro de agência de viagens; claro que dos velhos empregados que nós conhecíamos pelo nome – o Vicente era guarda-freios da Carris e fazia ali um biscate, todas as noites, com uns bigodes de meio metro – nenhum sonhava em saber falar inglês, o que, aliás, também era totalmente inútil: quem ia à Trindade era porque queria comer um bife com aquele incrível e inimitável molho e uma caneca, e para isso qualquer língua serve.

Se, ao menos, o molho tivesse sobrevivido…

Quando o bife custava vinte e cinco escudos (12,5cents!), mais vinte e cinco tostões se fosse com ovo, nós sempre apertados com as nossas magras mesadas estudantis, fazíamos a festa com uma “molheira”, batatas fritas, pão e uma imperial, tudo nem chegava a 10$00! E que festa! Perante aquele molho quem queria carne? Estava ali tudo o que importava. O Vicente, mal nos via, trazia logo a bebida, sem perguntar nada, depois era só saber se o molho era com carne…. ou sem!

O molho que hoje acompanha os maus bifes da Trindade é uma orgiazeca de gordura e Maizena com um sabor arrepiante a coisa instantânea, feito a metro e despejado por cima.
A Trindade perdeu a alma, ficou o zombie, foi-se o espírito.

Fico às vezes a pensar se, como num filme de terror de série B, o velho Barbas, ou Conde, alfarrabista ou livreiro triste, era afinal a alma da Trindade, entristecida por vislumbrar o seu pobre futuro. Porque, como é sabido, as almas tudo sabem…

Durante muitos anos, eu e outros amigos da velha Trindade, fomos experimentando em tentativas sem fim, pelo método infalível do erro corrigido, emular o molho da Trindade, o antigo claro. Com algumas dicas “assopradas” ao ouvido pelo Vicente, entre duas imperiais, conseguimos o que aqui fica e que é, seguramente, a melhor aproximação ao desaparecido “melhor molho de bifes do mundo”:

Ingredientes:

1 Kg de bifes de novilho
250g de Manteiga
2 colheres de sopa de Banha
2 colheres de sopa de alho esmagado (ou massa de alho)
2 folhas de louro
2 colheres de sopa de condimento de mostarda vulgar (não de Dijon)
1 Imperial Sagres (ou uma Mini)
1 café forte (bica)
1 pacote de natas (200ml)
3 gemas
Sal e pimenta

Preparação:

Bata os bifes com o martelo apropriado, deixando-os finos (isto é um bife de “cervejaria”). Tempere com um pouco de pimenta e sal, de um lado, e frite-os rapidamente em banha e lume forte, dos dois lados. Reserve.

Leve ao lume 125g da manteiga, a banha e o alho, até que fique castanha ( cor de couro) mas sem queimar. Adicione então a restante manteiga, o louro e a mostarda e deixe ferver, mexendo sempre com as varas. Ponha então a cerveja e deixe ferver cinco minutos para ter a certeza que evaporou o álcool antes de juntar as natas onde previamente bateu as gemas e a bica. Toda a operação é feita mexendo sempre com as varas, melhor duas pessoas.
Leve de novo ao lume, mexendo para homogeneizar, prove e tempere de sal e pimenta.
Junte os bifes e deixe que acabem de passar no molho, que os deve cobrir.

Sirva em frigideiras de barro ( ou de metal, como na Trindade), com um ovo estrelado em cima, nadando em molho e com batatas fritas em palitos finos, à parte.