quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Tajine de Carneiro com Figos (Lost in Translation)

Não há figos como os de Marrocos!

Há muitos anos, ainda no tempo das viagens de mochila, fui com a Maria José até Marrocos. Éramos ambos bem jovens nessa altura e as finanças jovens só permitiam ficar pela borda Norte do país, Tânger, Tetouan, sair pela espanhola Ceuta.
Era Verão e Marrocos é, nessa altura, uma incrível paleta de cores, cheiros e aromas, a despertar apetites urgentes pelas novidades estivais: tâmaras, figos, açafrões, chás, óleos preciosos, tudo se nos ia oferecendo, à compra e ao palato, numa sucessão rápida, regateio após regateio.
No terceiro dia de Tânger, muitos figos entretanto comidos sem lavar, deu-se a catástrofe: fui acometido por uma gastroenterite que me deixou com, além dos sintomas digestivos habituais, uma febre de 40ºC!
Sem sabermos o que fazer, eu delirava no meio da febre, a Maria José foi pedir auxílio no pequeno hotel onde estávamos e, daí a pouco, chegava o médico!
E que médico!
Era um homenzinho sujo que falava francês ainda pior do que eu, com uma maleta que parecia saída de um caixote de lixo.
Sem mais, abre a sua caixinha de Pandora e tira uma seringa e uma saqueta de Aspegic, das orais, que tinha dentro um pó já acastanhado e que se preparava para me injectar, dissolvido num líquido qualquer que vinha num frasquinho.
Lúcido suficiente para perceber que se aproximava a minha hora, não pela gastroenterite mas pela abominável injecção, mas fraco demais para conseguir reagir fisicamente, reuni tudo o que me restava para lhe dizer que não queria um remédio para a febre mas para a doença.
Balbuciei, no meio do delírio, apontando para a saqueta de Aspegic estragado: - “Je suis alergique, j’ai mangé beaucoup de figues”.
Então, perante os meus olhos atónitos, o curandeiro começou a contorcer-se em esgares, um dedo sobre a boca no universal gesto de pedir silêncio, o polegar da outra mão a apontar disfarçadamente para a Maria José, que estava atrás dele.
- J’ai mangé beaucoup de figues , repeti perante as contorções aflitas do "doutor", que aumentaram de intensidade e intenção. “Non, non”, dizia para mim, numa aflição e depois para a Maria José, lá atrás, “il délire, il délire!”.
A Maria José, que não estava a perceber nada daquilo, lá lhe confirmou as prodigiosas quantidades de maravilhosos figos que eu tinha comido e então, de repente, de novo uma mudança total: descontraiu e passou a rir muito, parecia outro. Acabou por passar uma receita de algo que nunca se chegou a aviar e, ao despedir-se, segredou-me que tinha percebido que eu dizia “J’ai mangé beaucoup de filles” ali, à frente da minha mulher.
Acabei por curar-me com um antibiótico que venderam à Maria José, numa farmácia, e no dia seguinte, já estava na rua, de novo e a comer estes deliciosos figos que, frescos, meio passados ou secos, fazem parte integrante e imprescindível da cozinha marroquina. Sobremesas, tajines, compotas, acompanhamentos, tudo leva estes frutos do Mediterrâneo e do deserto.
Um dos pratos emblemáticos e imperdíveis da cozinha de Marrocos é a deliciosa Tajine de Carneiro e Figos, uma experiência gastronómica única e que não mais se esquece.


Ingredientes:

1,5-2 kg de carne de carneiro, perna e costela
500g de figos secos
2 Cebolas picadas
1 ramo de Coentros
1 colher de sopa de sementes de coentro
½ colher de gengibre em pó
½ colher de pimenta preta
½ colher de Curcuma
½ colher de canela moída
4 colheres de sopa de óleo de Argão (ou Azeite)
Sal q.b.

Preparação:

Ponha a carne, a cebola, a gordura e todos os temperos numa panela, cubra com água e deixe cozer durante 90 minutos.
Lave os figos e coza-os em vapor durante 10 minutos.
Sirva os figos sobre a tajine quente.

Nota: Este prato tradicional é acompanhado por chá de menta e, por vezes, com cuscuz cozido em vapor.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Os Risottos de Umberto Eco

“Perguntei-lhe apenas que direcção tínhamos tomado:- Solara fica na fronteira entre as Langhe e o Monferrato, é um sítio lindíssimo, vais ver, paizinho. …/… via sinais que me falavam de cidades conhecidas, Turim, Asti, Alexandria, Casale. Depois entrámos em estradas secundárias …/… evidentemente tínhamos penetrado no Monferrato…/… estávamos a entrar noutro mundo, numa festa de vinhas ainda jovens.
… a determinada altura vi uma placa que dizia Mongardello. Disse: - Mongardello. Depois Corseglio, Montevasco, Castelleto Vecchio, Lovezzolo, e chegamos, não é?”

É assim, com o seu estilo poderoso e cativante, que Umberto Eco começa a viagem de Yambo pela estranha amnésia que o afecta. É uma viagem pelo seu passado, uma viagem pela história recente de Itália e os seus fantasmas, pela banda desenhada da sua infância, na “Misteriosa Chama da Rainha Loana”, que a Difel publicou entre nós em 2005.

Eu sou um bom “leitor”, mas incuravelmente naïf . Lembro-me como se fosse ontem do modo como, ainda há pouco na adolescência, vivi As Minas de Salomão, que alguém escreveu e Eça de Queiroz traduziu de modo tão magistral que o tornou uma obra-prima. Tremi então de raiva impotente por um tesouro ingloriamente perdido. De então para cá, os (bons) livros teimam sempre em pregar-me a mesma partida ao fazerem-se vividos e reais, ficção a baralhar-se com informação.

Nunca duvidei da existência destas vilas e aldeias de Eco e, como ia passar as férias por Itália, reservei um dia de paragem entre Milão e Turim, para visitar este roteiro literário que me seduzia e que queria ver com os meus olhos.

Cheguei a Casale, não liguei ao primeiro sinal “estranho” que era ninguém saber onde eram todas as outras localidades – “Disparate! São pequenas aldeias que nem vêm no mapa” – dizia convicto enquanto percorria quilómetros sem fim, entre as Langhe e o Monferrato, na esperança de avistar as velhas e gastas placas que indicariam Corseglio, Lovezzolo, por fim Solara.
Nada!
Cheguei a Turim já de madrugada, zangado, muito zangado com o pobre Umberto Eco, miserável vigarista que misturava assim, deliberadamente, terras que existem com outras inventadas…

Conheci nesse dia, por compensação do esforço vão ou prémio “o mais ingénuo do ano”, os Carnaroli, Baldo, Vialone anão, Balilla, Arbório, Roma, se calhar ainda outros que já esqueci, por não ter comprado toda a incrível variedade de arrozes especiais para risotto, que ali crescem nas margens do Pó e nunca chegam às prateleiras estrangeiras.
Nunca os teria conhecido se não tivesse saído da grande auto-estrada que liga Milão a Turim e ido à procura da Solara de Eco.

Obrigado Umberto!

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

II Série - Cá vamos nós!

Não gosto de remakes e sequelas.

Claro que há honrosas excepções: aquele filme, peça ou livro que, refeitos com o toque do génio, ultrapassaram e por vezes, apagaram da memória os pálidos originais.

Quando, ainda há menos de dois meses, decidi que o Comidas Caseiras chegara ao seu fim natural, estava realmente decidido a pôr um ponto final nessa série, que foi a minha estreia, não só nos blogs de comidas e gastronomia como na própria Blogosfera.

Se hoje aqui volto e reacendo este lugar algo estranho em que, mais que de comidas, se fala de uma vida e das pequenas histórias que a fazem e fizeram, é por causa totalmente acidental e fortuita: Instalei a 19 de Janeiro um contador de visitas no Outras Comidas.
Dias depois, surpreendido pelos números aí atingidos e que eu nunca imaginara - na realidade já acharia um décimo muito bom!- decidi instalar aqui também um contador.

Isto passou-se há onze dias e, desde então, percebi, totalmente estupefacto, que fui visitado neste blog "morto" há quase dois meses, por mais de 2700 vezes!

Bom, se todos os dias há duzentas e cinquenta pessoas que acham que ainda vale a pena passar por aqui, não as irei defraudar com o meu silêncio.
Claro que não poderei manter regularidades passadas: a minha mudança do "morno" Alentejo para o rodopio de Lisboa, acarretou um aumento natural da minha actividade profissional como hipnoterapeuta e auriculoacupunctor, com uma diminuição drástica do tempo livre.

Mas tentarei ir "aparecendo" e, aos poucos, dar-vos mais um pouco de mim, neste "day after".

Até já!