segunda-feira, 14 de março de 2011

Não há pachorra!

................ Quando o touro abana os cornos, diz-se que derrota. Depois, quando vai passando pelo capote com que o toureiro o engana, diz-nos o comentador televisivo que aquilo se chama chicuelina, manuelina, derechazzo, natural, etc. e a gente a ver o boi a passar pela capa e mais nada. Quando o bicho, chateado com o seu triste destino de bôbo da praça se encaminha desinteressado de faenas, para as tábuas, diz-nos o aficionado comentador que mostra crença natural e falta de trapio, num puxar de orelhas ao ganadero, que não é um lavrador qualquer e sim um dom doutor e de sangue azul . E por aí fora…

Falei-vos destas detestadas coisas taurinas, não porque me interessem minimamente mas porque são um bom exemplo de como os jargões técnicos com que as elites não resistem a enfeitar os seus discursos, os tornam peças autistas de uma inutilidade absoluta, a não ser para masturbatória carícia do inchado ego do autor.

Vem isto a propósito de vinhos e da dificuldade que a esmagadora maioria de nós tem frente às imensas prateleiras e centenas de marcas de vinhos que se digladiam em design, preços e contra-rótulos absurdos, uns auto-elogiantes, outros conversa comercial de treta, outros ainda cheios de notas de prova, referências às técnicas e condições de fabrico absolutamente esotéricas e outras tantas parvoíces que apenas baralham quem os lê na esperança que pudessem ajudar na escolha.
Dantes havia poucas marcas e toda a gente sabia o que bebia. Os vinhos dividiam-se entre os vinhos normais, uns mais caros e cuidados, outros mais vulgares e acessíveis, e os vinhos que se destinavam à elites das provas, que nessa altura ainda não falavam à plebe, Peras Mancas e Barcas Velhas, bebidos pela malta anafada da finança e patos bravos e comentados nos restritos círculos iniciáticos que os próprios preços formavam e cujo acesso restringiam.

Mas os tempos mudaram, os de cima perceberam que havia um imenso mercado cá em baixo para debicar e os de baixo entreviram uns degraus para tentarem provar as delícias proibidas, agora ali à democrática mão de semear, ou assim parecia, dado que o que mais havia era gente que nem nunca tinha tido uma videira num vaso e que metia qualquer coisa numa garrafa cheia de design e a punha à venda a 30€ a ver se pegava; e o certo é que às vezes pegava mesmo, à conta da novel geração espontânea de enocríticos da internet e revistas popularuchas.
A blogoesfera encheu-se de comentadores/críticos que nenhuma revista quis mas que agora podiam gritar aos quatro ventos e à borla o seu “super especializado” jargão enófilo, o tal que ainda se pode ver em muitos contra-rótulos, para deslumbrar a malta, uns estúpidos que nem sabem dizer que são taninos aquilo que nos deixa a língua áspera como se tivesse sido passada a lixa nº 80.
Sempre preocupados em mostrar que o seu educado gosto é bem diferente do gosto de quem apenas gosta de beber vinho pelo bem que ele lhe sabe e não por saber que estagiou 12 meses numa barrica de carvalho Nevers de grão médio e tosta forte, maceração pós-fermentativa em cuba inox a 26ºC e malolática na barrica, mais todos os tiques da linguagem cifrada, pomposa e oca, pretensamente especialista, as penosíssimas e enfadonhas descrições de prova em que cada um se esforça por recordar mais nomes de frutos do bosque e, quando já não há mais, lá vêm as compotas de cereja e de ameixa e aquele subtil sabor, glória de qualquer enólogo que se preze, a mirtilos azuis, mas entre a 3ª e 4ª semana de maturação, se expostos a Sul e o ano for bom… não há pachorra para tanta parvoíce!
A montanha pariu afinal um rato.
Quem (como eu) esperou que fosse finalmente surgir alguém capaz de traduzir os intrincados códigos dos engenheiros do vinho, viu surgir afinal, com uma ou outra honrosa exceção*, uma horda de peralvilhos inchados de sabedoria e importância que, a despeito de andarem a falar para o boneco, na sua ânsia de afirmação pessoal, só conseguiram complicar ainda mais o que já muito complicado era.
Desçam à terra! Percebam que não é desonra nenhuma admitir que um vinho alentejano que vende muito e nem arrepia a língua, pode ser um bom vinho, sem levar logo o epíteto de “fácil”, “redondinho” ou "popular".
Percebam que lá por um viticultor produzir em Portugal com Sirah, Chardonnay ou Pinôt Noir, não se torna um Miguel de Vasconcelos vínico, a atraiçoar as castas nacionais, tratadas com um fervor patético que raia o nacionalismo.
Quando chegamos à temível prateleira, queríamos era recordar que alguém que o tinha provado, nos tinha dito: - Pá, tens aí uma boa pinga, que eu achei que ficava a matar com uns chocos grelhados, se estiver bem fresquinho.” E não “estamos perante um caso paradigmático de malolática incompleta, a fazer supor, no entanto, que podemos esperar deste produto do Eng. Fulano….”. Perceberam?

* Honrosa exceção é, por exemplo, a do Arq. Cupido no seu blog Garficopo, onde se fala de toda a classe de vinhos, um conhecedor experiente que não se importa de dizer, cito: "Já o Syrah é efectivamente muito fácil de gostar e redondinho e diria ainda que é algo guloso. Claro que isso não é defeito nenhum, já que nem todos os vinhos devem ser para um gajo passar uma hora com o nariz enfiado no copo antes de provar".