quinta-feira, 27 de agosto de 2009

CAPILÉ ou A Morte da Avenca

A Silvina, cujas feições eu já não recordo, ficou como o meu arquétipo da Brites, a célebre Padeira de Aljubarrota, a mulher-de-armas que, no meu imaginário de criança, tinha assado à traição os malvados espanhóis!
A Silvina usava o cabelo grisalho repuxado para trás num carrapito de aspecto pétreo e vinha às Quintas-Feiras, para lavar a roupa que, antes de máquinas e até de detergentes, era tarefa titânica a que se poupava assim a Virgínia que era a empregada de todos os dias.
A “lavagem da roupa” começava, na realidade, logo de véspera, com as operações de preparação da saponária, pela Virgínia ajudada pela minha mãe e pela Tia Lucinda, numa cerimónia que tinha para mim o cunho de magia propiciatória da grande festa da barrela do dia seguinte, toda força e cheiros e águas.
A saponária fazia-se numa grande panela que assumia para mim proporções ciclópicas, de facto era algo tão grande que eu cabia lá dentro, na pequenez dos meus 3 ou 4 anos.
Para dentro da grande panela ao lume, as facas afiadas iam desfiando finas lascas translúcidas e marmoreadas de sabão azul e branco que, a pouco e pouco se desfaziam numa agonia viscosa e fumegante, inundando a casa daquele cheiro a aldeia da roupa branca que hoje é tentado de novo nesses detergentes ditos “sabão Marselha”.

Durante toda a Quinta-Feira, até as cordas estarem cheias de roupa a secar, lá para a tardinha, o tanque da roupa permanecia destapado e a grande avenca cujo sítio era a cobertura de madeira do tanque, era mudada para a cozinha, onde aguardava a hora de voltar, por mais uma semana, a ser a rainha dos vasos de plantas daquela marquise.

Aquela Avenca tinha sido colhida do interior de um poço de Moita de Ferreiros, aldeia em que os meus pais haviam passado férias antes do meu nascimento e era a mais extraordinária que eu algum dia havia de conhecer.
Com as suas grandes frondes de feto de alguma floresta primordial, na ponta das finíssimas hastes negras que a deixavam ondular a qualquer brisa, a avenca transbordava do seu vaso numa enorme bola verde de onde, diariamente, a minha mãe ia retirando todas as “folhas” e pés que iam envelhecendo, para assim estimular a emissão de novos rebentos.
Tudo o se colhia desta avenca era guardado numa caixa de folha que fora de bolachas e que agora era a Caixa do Capilé. Depois, por alturas da Primavera, a minha mãe cortava rente toda a avenca, deixando quanto muito um escasso centímetro junto à terra, era o “corte à escovinha” e então era ver a maravilha de dezenas de rebentos que em poucos dias surgiam, quais esmeraldas peludas todas enroladas e que abriam em novas frondes, quase que se viam a crescer.

O material desse corte, junto ao que durante o ano tinha sido podado, era a matéria prima para a confecção do Capilé.

O Capilé é um xarope de caramelo aromatizado de limão e avenca que, depois de diluído em água gelada faz um refresco espantoso cuja composição, curiosamente, é a mesma da Coca-Cola. Mas só a composição, é claro; o sabor é incomparável! Fazia parte de uma trindade de xaropes/refresco muito comuns em qualquer café e nas casas particulares, Capilé, Groselha e Salsaparrilha.
Para mim, não havia nenhum que chegasse ao capilé, bebida preferida também pelo Eça para acompanhar o bife do Marrare.

Ao dar a sacramental volta pelos meandros virtuais, antes de me pôr a escrevinhar isto, qual não foi o meu espanto por ver que o meu querido capilé estava extinto: em toda a Web, além de gente que se chama ou alcunha Capilé, só há asneiras e confusão, a Bimby diz que capilé é mazagrin, ali que é refresco de café de cevada, o infame xarope de capilé Neto Costa a proclamar-se detentor da tradição…

Aqui fica, orgulhosamente só no universo, a receita do melhor capilé do mundo:

Ingredientes:

3 Kg de Açúcar Amarelo
Vidrado da casca de 3 Limões
Sumo de 2 Limões (facultativo)
50g de Avenca seca
1,5 L de Água do Luso

Preparação:

Passe a avenca seca por água fria para eliminar algum resto de pó, esporos ou terra e ferva-a por alguns minutos em Água de Luso. Deixe a infundir até arrefecer.

Toste o açúcar amarelo no forno (tem mesmo de ser “amarelo” pois o açúcar branco funde e queima sem tostar). Isto faz-se espalhando o açúcar no tabuleiro do forno e levando-o a tostar a superfície no grill ou na parte mais alta do forno.
De minutos a minutos, quando a superfície fica tostada e escura, mexe-se com um garfo de madeira ou espátula e volta ao forno até que todo o açúcar esteja castanho escuro, não só à superfície mas a totalidade.

Junte o açúcar tostado à infusão coada de avenca, mexendo sempre pois tende a fazer um bloco no fundo. Leve ao lume com o vidrado da casca de limão e, se gosta do travo ácido no refresco, com o sumo.
Deixe ferver em lume baixo por cinco minutos, engarrafe de imediato, a ferver, e rolhe bem.

Assim, com a ajuda da grande avenca, se fazia a meia dúzia de garrafas negras que se consumiam ao longo do ano.
Depois, apareceu o primeiro detergente em pó, o Tide!

O Tide (seguido do Omo, Juá e Ajax) representou uma mudança radical na vida das casas: acabaram-se as saponárias e as barrelas esfregadas, a Silvina continuava a vir às Quintas mas a “roupa” deixou de ser o espectáculo alquímico e suado que tinha sido até então.
Já dava tempo para uma pausa para ouvir o folhetim radiofónico, reivindicado na contratação por qualquer mulher-a-dias que se prezasse, uma história de faca-e-alguidar patrocinada pelo novel detergente, que fazia chorar as pedras da calçada e que ficou conhecida, precisamente, por A Coxinha do Tide!

A Silvina foi dispensada quando, lá para 1965, chegou enfim a máquina de lavar.
Numa das suas últimas idas à Quinta-Feira, nunca se soube como, o pacote do Tide “entornou-se” sobre a avenca que, apesar de todos os cuidados e lavagens, amareleceu e morreu dias depois, numa agonia química inesquecível.
Odiei (e acho que ainda odeio) a Silvina por isso, apaguei-lhe as feições da minha memória e assim permanecem, uma mancha branca com cabelo grisalho e carrapito apertado, a matar cobardemente a avenca do capilé.

Depois, até hoje, houve muitas avencas e capilés, mas nenhuma chegou em pujança e carisma à grande avenca do poço de Moita de Ferreiros.

Por vezes, quando não tenho a necessária, faço o capilé com Lúcia Lima.
Mas é outra coisa, claro.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

O Curto-Circuito

Um dos meus primeiros livros da infância, que ouvi mesmo antes de saber ler e depois li com o deleite das coisas novas e mágicas, foi “O Longo Inverno”, de Laura Wilder, um dos livros que depois daria origem à série “Uma Casa na Pradaria”.
Hoje, quase meio século e algumas centenas de livros depois, o que recordo desse Longo Inverno são episódios desalinhados, porventura os que terei vivido com mais intensidade, a lenha feita de palha torcida, a expedição de trenó em busca do comboio das sementes, a predição do Inverno terrível por um velho índio, a moagem do cereal num moinho de café e, claro, o roubo de trigo por um buraco na parede, a uns irmãos em casa de quem, no meio da fome geral, se faziam enormes pilhas de fumegantes panquecas!

Estas panquecas que eram ilustradas com um desenho por demais elucidativo, tornaram-se num mito que a minha mãe tentava emular em vão, fazendo os mais variados crepes mas nunca “aquelas” suculentas e fumegantes panquecas.
Só em adulto, muitas experiências frustradas pelo meio, já com a mordomia do anti-aderente à disposição, cheguei finalmente às panquecas perfeitas, ou seja, as panquecas do Longo Inverno.

Depois de ter ido viver no monte alentejano, estas panquecas tornaram-se muitas vezes no pequeno-almoço de Domingo, para toda a família.
Foi num desses domingos, enquanto preparava a massa fofa das panquecas, que ouvi distintamente esse inconfundível ruído seco e inquietante de um curto-circuito!
O ruído vinha do exterior, crepitante e irregular, intenso e ameaçador quando se vive no campo e por todo o lado há árvores e ervas secas.
Parei o trabalho culinário, saí para descobrir a origem e depressa percebi que só podia vir do poste eléctrico que sustenta o fio que atravessa o olival, aliás o único sítio onde passava electricidade naquele campo todo.
Não havia dúvida que estava perante uma grave emergência e havia que agir: um telefonema para a Companhia foi o suficiente para convocar o piquete e, durante a hora seguinte, claro que mais ninguém pensou em panquecas, só se tinha ouvidos para o misterioso ruído que nos ameaçava as árvores, a casa, quiçá a vida.

Finalmente, lá chegaram os técnicos, com o humor de quem foi acordado ao Domingo de manhã e mandado ir atrás-do-sol-posto.
- Atão onde é esse curto-circuito? – lá perguntaram à saída do jipe.
- Ali mesmo no poste, ouve? – disse eu apontando a coluna de cimento – tem estado toda a manhã a fazer este ruído.
Os dois homens do piquete entreolharam-se de um modo intencional que eu detectei logo, não sou nenhum parvo, e que interpretei como uma confirmação da minha inquietação e dirigimo-nos todos para junto do poste.

Então, quando estávamos talvez a cinco metros do objectivo, o ruído parou!

Desastre! Era pior que estar na cadeira de dentista e já não saber qual o dente que lá nos levou ou na oficina e o carro ter desistido daquele barulho que esteve a semana toda a fazer… - parece que parou, bom, mas os senhores ouviram bem… agora mesmo estava…- fui dizendo muito enfiado enquanto um dos tipos calçava uns estranhos artefactos de subir a postes, com um ar de peru em véspera de Natal e ia dizendo - na verdade não ouvi nada, mas vamos lá cima ver bem, esteja descansado.
O homem lá subiu o poste com uma agilidade símia, viu, voltou a ver e, finalmente, no silêncio da manhã alentejana, irrompeu de novo o ruído! – Vê? Ele aí está outra vez! – gritei eu, vitorioso.
- É este o barulho? – pergunta lá do cimo o homem-macaco da EDP – Ah! Bom… e desce num instante, sorridente por fim – Não é nada, não se preocupe, só lhe peço que ponha aqui uma assinaturazinha na folha de obra, se fizer o favor.
A folha de obra é o documento que justifica perante a burocracia deles a vinda até aqui e é constituída por três cópias, das quais eu tenho direito a ficar com a última, depois de garatujar uma assinatura no sítio que me indicaram.
Fiquei quase com pena de os ver partir.
É que agora tinham-se transfigurado: as figuras taciturnas de há um quarto de hora eram agora alegres, risonhos, quase hilariantes camaradas que estive para convidar a provar uma panqueca à Longo Inverno, não fosse já tão perto da hora de almoço. Lá se foram, não sem antes me lançarem um olhar amigo que não mais esquecerei.
Enquanto o jipe se afastava devagar, dei uma vista de olhos à folha de papel que me tinham deixado. Lá estava o “motivo da chamada”, curto-circuito exterior e, mais abaixo, na linha assinalada como “Anomalia reparada”, cigarra a cantar!

Nunca pude apurar se os solavancos que o jipe dava ladeira acima, eram fruto dos acidentes do caminho, se das gargalhadas que certamente iam lá dentro.

Comemos as panquecas ao lanche. Fi-las assim e estavam uma delícia.

Ingredientes:

3 ovos
3 colheres de sopa de açúcar
1 chávena de farinha com fermento
1 pitada de sal
50 ml de natas
1 colher de sopa de óleo
Leite q.b.

Preparação:

Separe as claras e bata as gemas com o açúcar até obter um creme esbranquiçado e liso.
Junte a farinha, natas, óleo e cerca de uma chávena de leite e bata tudo com as varas de claras. A consistência deve ser mais líquida que uma massa para bolo e menos líquida que massa para crepes.
Junte por fim as claras batidas em castelo firme com o sal.
Frite numa frigideira de crepes, vire com o auxílio de espátula e sirva quente com o que mais gostar, manteiga, mel, queijo, compota, chocolate fundido, etc.