quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Porto Vintage

Hoje seria talvez considerado como alguma espécie de assédio profissional ou procedimento eticamente suspeito, mas durante os anos da minha infância era perfeitamente comum o recebimento de ofertas em géneros por parte de pessoas que, eventualmente, tinham para connosco, além da amizade, algum vínculo de subordinação laboral.
O meu pai chefiava uma grande equipa de homens, espalhados por todo o país e nas então “províncias ultramarinas” e, numa altura em que era normal que um trabalho fosse para toda a vida, desenvolveu com muitos desses subordinados, relações de verdadeira e profunda amizade.
Ao longo do ano, esses amigos que trabalhavam na província traduziam a sua amizade por envios a que nos habituámos: as Morcelas da Guarda, enviadas por um tal Sousa, trutas de conserva de Aveiro e Doces de Ovos da Pastelaria Horta, para os “meninos”, do Laranjeira, de Viseu, Castanhas, Uvas e Peros Bravo de Esmolfe, pelo Taveira da Rocha, de Carrazedo de Montenegro, Presunto de Chaves, queijos e vinhos especialíssimos, broas de proporções bíblicas…

Tal como eu (1955), também o meu pai nasceu em ano de Porto Vintage 1922.
Quando, em 1972, completou meio século de existência, recebeu uma prenda de anos assaz curiosa: Um garrafão de cinco litros de Vinho do Porto.
Esse garrafão chegou lá a casa via CP, sem marca e com uma nota que dizia algo como”…ao amigo Pontes, um vinho do Porto do seu ano de nascimento, parabéns, etc…” e era enviado por um grupo de colegas do Norte.

Pouco dados a estas subtilezas, lá em casa ninguém estranhou ter recebido um garrafão assim sem marca, a coisa era banal, todos provámos o vinho que era algo de verdadeiramente assombroso, com a inocência da ignorância, pôs-se um tanto numa licoreira e o resto foi guardado na despensa.
Durante os anos seguintes, sempre que era preciso a minha mãe lá ia buscar tempero para bolos, assados, guisados, sei lá, até que acabou por acabar o tal Porto Com a Idade do Pai !

Anos depois, eu já homem feito, em conversa com o tal Taveira da Rocha, soube que aquele garrafão era um Porto que ele próprio tinha descoberto, em pipa ainda, numa adega particular, perdida no Douro. Era, além do vintage de 1922, envelhecido no carvalho por 50 anos e o preço foi tal que teve de ser dividido por muitos…
Eu consegui disfarçar o embaraço provocado pela revelação e, ainda hoje, não consigo perceber se tenho vergonha pela tolice ou orgulho pacóvio por ser, seguramente, o único ser humano que comeu alegremente, filhós temperadas com um Vintage de 50 anos!

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Os Frangos do Senhor Sabino

Ir comer frango de churrasco ao Sr. Sabino era um saber iniciático que chegou lá a casa, nunca cheguei a apurar como.
Penso que teria sido segredado ao meu pai em conversa de pescarias, suspeito por quem, mas a verdade verdade, é que nunca tive a certeza.
É que o "Sabino" era um local improvável e totalmente fora-da-lei e o próprio, pasme-se, suplicava aos clientes que nunca divulgassem a sua existência, o que ia conseguindo de forma medíocre, pois era difícil arranjar vez para um almoço ou jantar, este à luz de um velho e ruidoso "Petromax", pendurado sobre a mesa de madeira enodoada, dizia-se que era o sítio onde matava o porco...
Era essa mesa de matança e os dois bancos corridos que a serviam, que determinava a lotação máxima de cada refeição: Oito pessoas, quatro de cada lado - quanto muito podia-se ir buscar uns mochos de fórmica vermelha para as cabeceiras e lá se sentavam mais dois.
Durante o Verão, apesar do "segredo", era difícil arranjar um dia para se ir ao Sabino. Depois, com os banhistas de ocasião afastados pelo Outono e pelo fim impiedoso das férias, podíamos então desfrutar dessa experiência única que era a degustação de um frango espantoso, paradigma da simplicidade e da paciência infinita com que eram assados pelo Sr. Sabino.
Este Sr. Sabino era, ele próprio, uma personagem dificilmente descritível: pequeno de estatura e irrequieto, ele era, simultaneamente, agricultor, viticultor, comerciante, criador de gado, construtor civil, destilador ilegal da melhor "gimbrinha" da região e, last but not least, o incontestado "rei" dos frangos assados no carvão.
Isto do "rei", digo eu agora, que "reis" de uma coisa qualquer, são normalmente aqueles que, por fazerem o seu mister ou venderem o seu artigo aos milhares ou às carradas, reclamam para si próprios o nobiliárquico título, assim como se fosse um atestado de Guinness, livrinho cretino que, também ele, regista feitos, quantidades e tamanhos e, curiosamente, entre tantos milhares de "recordes", não tem um único que distinga a qualidade!
Como não podia deixar de ser, o "restaurante" Sabino, além da inexistência legal, também não se via a olho nu. Situado por baixo da casa do próprio, já não consigo precisar se em Odrinhas, se na vizinha Santa Susana, aproveitava o declive natural do terreno e abria-se por trás, a toda a largura da casa, como uma garagem, para o imenso vale que se estende até à Assafora e à Praia da Samarra, uns quilómetros mais adiante.
À porta, entre arrumos agrícolas, fardos de palha e uma fascinante montanha fumegante de bagaço a fermentar, depois de ter deixado para trás as uvas, o vinho, e a bagaceira ilegal, estava o meio-bidão ferrugento onde umas poucas brasas quase apagadas realizavam o milagre da transmutação de simples frangos, nem sei se "do campo", em peças gastronómicas únicas, ao fim de uma laboriosa assadura que durava nunca menos de quatro horas.
Quando se dá a um frango um tal "tempero", tudo o mais soa a excessivo e desnecessário. Umas pedritas de sal grosso e o tal calor doseado com usura era tudo o que o Sabino utilizava para apresentar o divino frango, sem uma única asinha mais escura, pele estaladiça, acompanhado por umas saladas de tomate ali apanhado e batatas fritas que a mulher ia fritando na cozinha, por cima, e trazendo sempre a ferver.
O vinho, só para os adultos, claro, saía directamente das grandes cubas em cimento onde tinha nascido ou já dos tonéis, ali mesmo, ao lado do secreto alambique de cobre disfarçado com sacas de cimento velhas, que a garagem-restaurante também era a adega e destilaria, pois claro!
Não faço ideia se teve continuação este "segredo" do frango do Sabino. Nem sei se descobriria de novo o local, agora enxameado de construções por todo o lado que dantes era campo.
Do frango do Sabino da minha infância e adolescência, retive a lição mais preciosa: hoje, no meu "barbecue" alentejano, construído a partir das medidas do bidão enferrujado do Sabino, faço também essa delícia a fogo mínimo e paciência máxima, uma manhã inteira a assar o almoço lá para as duas da tarde e ter como prémio o silêncio de algum conviva, daqueles que sabem um molho secreto para pincelar frangos de comida-a-peso e que, ao provarem o meu frango do Sabino ficam muito caladinhos, arregalam o olho e vão comendo... comendo...

Ingredientes:

Frango aberto, cortado em metades.
Carvão de azinho
Um pouco de sal grosso
Assador em que o fogo fique, a 40cm da grelha
Paciência

Nota:

Acenda o carvão uma hora antes de por a carne ao lume.