quinta-feira, 29 de maio de 2008

Coelho à Caçador

Transporto em mim uma incoerência insanável que me acompanhará por certo toda a vida: Simultâneamente, detesto a caça, enquanto actividade, mas adoro a caça enquanto pitéu. Sendo que um não existe sem a outra, resta-me ir aproveitando, para meu deleite, o que outros matam e eu como, ambos por prazer! Se não fosse este remorso ...
Gosto muito de coelho, adoro se bravo e uma boa lebre deixa-me em êxtase!
Na minha infância e adolescência, um tio caçador inundava-nos positivamente com dúzias destes bichos, para meu gáudio, que sempre fui, por ali, o maior aficionado destas iguarias venatórias.
Se uma lebre tenra pode ser nobre assunto para uma infinidade de preparações de luxo, já o plebeu coelho tem uma receita que se destaca dentre todas como a que mais valoriza a sua firme carne: O Coelho à Caçador!
Mas o tio caçador, depois de uma vida em que foi gadanha de morte para tantos bichinhos, acabou por ser ele próprio levado pela incontornável sentença que a todos aflige e secou-se assim a fonte de tordos, perdizes, codornizes, pombos, coelhos e lebres, tantos outros de que não retive o nome.
Ficou o Coelho à Caçador como a minha mãe fazia, agora adaptado, pela força das circunstâncias, mais a coelhos mansos que bravos, mas ainda assim a ser uma festa para o paladar.

Ingredientes:

1 Coelho
150g de toucinho
2 cebolas grandes ou 3 médias
1 cabeça de alhos
Sal e pimenta
1 litro de bom vinho tinto, encorpado
1 dl de Azeite Virgem ou 4 colheres de banha
2 tomates maduros ou pelados
2 dl de calda de tomate
2 folhas de louro
1 colher de sopa de alecrim (folhinhas), se for coelho manso
1 colher de sopa de carqueja (flor seca), se for coelho manso.
Batatas
Pão fino, duro
Azeite vulgar, para fritar.

Preparação:

Amanhe o coelho como habitual, retire a vesícula com muito cuidado, parta o bicho em pedaços equilibrados, ponha tudo numa tijela, tempere com o sal e pimenta, junte o louro e os dentes de alho esmagados com uma pancada mas conservando a casca e regue tudo com o vinho tinto, que deve cobrir a carne. Deixe pelo menos um par de horas, melhor se puder ser para o dia seguinte.
Num tacho, melhor se tiver em barro, derreta a banha e frite na gordura as cebolas cortadas em rodelas finas e o toucinho em tirinhas. Quando alourarem introduza os tomates desfeitos groseiramente e calda de tomate e por fim a carne com a marinada.
Se está a cozinhar um coelho manso e gosta do sabor acre da caça selvagem, junte o alecrim e a carqueja. Depois de ferver, baixe o lume, tape e deixe estufar até o coelho estar tenro, o que pode levar meia hora, se manso, até quase duas horas se bravo. Neste caso pode ser necessário juntar líquido aos poucos, que será sempre mais vinho e nunca água.
Enquanto o coelho estufa, coza batatas novas com casca e frite fatias de pão branco em azeite. Deixe ficarem louras, escorra e reserve.
Serve-se o Coelho à Caçador sobre estas fatias de pão frito que são comidas também depois de bem embebidas no delicioso molho e acompanhado de batatas cozidas, temperadas também com o molho da carne.

Notas:

As crianças lá em casa, eu incluído, íamos sempre sonhando com o dia em que a minha mãe condescendesse em fazer batatas fritas em vez das odiadas cozidas, que achávamos o acompanhamento condigno para o petisco, embora raramente tivéssemos essa sorte.
O Coelho à Caçador pede de uma maneira muito especial para ser acompanhado por vinho alentejano ou da península de Setúbal.



terça-feira, 27 de maio de 2008

Cozido

Se para se ser gourmet é necessário desprezar o Cozido à Portuguesa, então "abaixo os gourmets, agora e para sempre!". De há uns tempos a esta parte, passou a ser moda entre alguma malta mais "gourmet fashion" (mais faxon que fashion), citar o bom e velho Cozido como exemplo de comida boçal e sem classe. Claro que sendo o Cozido um prato absolutamente transversal a todas as regióes e classes sociais portuguesas, incluindo o temível Povo, essa gente que normalmente até vem precisamente do povo mas que, depois de incluir algum "y" e duplicar umas consoantes no velho nome de baptismo, passa a vida a ocultar as verdadeiras origens e a cultivar uma nova biografia mítica, não podia deixar de renegar aquele prato tão igualitário quanto delicioso. Faz-me lembrar as célebres churrascadas de fim-de-semana, em Fontanelas, de um dono de restaurante macrobiótico, a renegar as profissionais agruras de arroz integral de Segunda a Sexta!
O Cozido à Portuguesa é a festa feita prato! Desde o cozido de carnes fumadas de Trás-os-Montes, ao comido com pão, todo desarrumado e com grão, no Alentejo, todos os cozidos partilham algo de indefinido mas suficientemente forte para que um Cozido à Portuguesa não tenha qualquer possibilidade de ser confundido com qualquer dos outros que existem por esse mundo fora.
Não há dois cozidos iguais: cada família transporta o seu arquétipo e transmite-o à geração seguinte, com ou sem alterações, como se de um gene se tratasse.
Na minha família, o Cozido é assim:

Ingredientes:

Carne de Vaca (peito, maçã do peito, chambão) 150g por pessoa
Orelha de porco, 1/2 por pessoa
Chispe, meia unha por pessoa
Entrecosto, 150g por pessoa
Toucinho entremeado mas gordo, 150g para 6 pessoas
Frango do campo, 1/8 por pessoa

Chouriço de carne artesanal, 1 para 6-8 pessoas
Farinheira da Beira
Chouriço de Sangue fresco (negro avinagrado)
Morcela

Couve Tronchuda Portuguesa
Lombardo ou Repolho (coração)
Batata média, 1 por pessoa
Cenoura, 1 por pessoa
Nabo, 1/2 por pessoa
Feijão Catarino ou Feijoca (cozido de Inverno)
Feijão verde (cozido de Verão)

Arroz Carolino
Sal
Hortelã

Preparação:

Use carne de vaca ou novilho, animal adulto.
Coza a carne de vaca durante 25 minutos na panela de pressão, com sal e água abundante. Deixe sair toda a pressão, abra, retire um pouco da água para um tacho pequeno, e introduza na panela de pressão as carnes de porco, toucinho e chouriço de carne. Tape e leve a cozer, com pressão, mais 35 minutos. Entretanto, ponha no tacho a morcela, o chouriço de sangue e a farinheira previamente demolhada em água fria durante uma hora, todos furados com um palito aguçado, a cozer em lume brando e tacho destapado, durante cerca de 10 minutos, vigiando para prevenir qualquer rebentamento.
Quando as carnes estiverem cozidas, abra e misture o caldo onde cozeu os enchidos. Retire então a quantidade necessária para fazer o Arroz de Sustância, que deve incluir alguma ôlha das gorduras sobrenadantes. Guarde as carnes e enchidos na panela tapada e passe o caldo para a panela onde vai cozer os legumes.
Comece pelas cenouras, couve portuguesa e nabos, deixe ferver 5 minutos, introduza então as batatas, o frango, uns ramitos de hortelã e o lombardo ou repolho e deixe cozer mais 15 minutos. Por fim, se está a fazer o cozido de Verão, ponha o feijão verde atado num molho, os últimos 5 minutos.
No cozido de Inverno junte no fim os feijões cozidos à parte, a menos que queira fazer um cozido chamado "de feijão" em que este é cozido com as carnes mas que deixa um tom acastanhado no resto dos ingredientes.
Entretanto ponha o arroz a cozer no caldo que reservou. Este Arroz de Sustância deve ser feito com um pouco menos de líquido que o dobro do arroz, retirado do lume antes de pronto e deixado a acabar fora do lume, tapado, de modo a ficar perfeitamente seco e solto.
Sirva a travessa dos legumes, escalde com o caldo destes as carnes que ficaram na panela, enquanto põe o arroz noutro recipiente, por fim sirva as carnes e enchidos partidos às rodelas numa segunda travessa.

Nota:

O caldo que sobra de um cozido, coado ou não, sobre umas fatias de pão duro e com uma folha de hortelã fresca no prato é uma experiência quase mística, de que não deve prescindir.
Claro que este é o Cozido de festa, o preceito excepcional; no dia-a-dia há coisas que não se pôem, tudo fica mais simples (e digerível) mas nem por isso menos aliciante.
Um dia destes publicarei um Cozido Pobre!

.

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Galinha de Fricassé

Voltamos com este fricassé ao recorrente tema dos pratos ditos "fáceis".
Todos o sabem fazer, como ao bife, mas a verdade é que basta provar os exemplares servidos na maioria dos restaurantes, se tiver estômago para a prova, ou provação, para verificar que , sob o nome de fricassé, é-lhe apresentada uma variedade imensa de papas mais ou menos dessoradas, a escorrer umas aguadilhas leitosas de uns fiapos de ovo cozido demais. Isto quando o "fricassé" não se limita a uma molhanga amarelada com uns pedaços de carne a boiar!
Na verdade, a execução de um bom fricassé não está ao alcance imediato de todos e dificilmente se compadece com a azáfama de uma cozinha industrial. É um prato para ser feito com o amor, cuidado e tempo que só se podem ter na nossa cozinha .

Ingredientes:

1 Galinha gorda ou Frango do campo
Sal grosso
1 raminho de Hortelã
1 Cebola grande
2 dentes de Alho
1 folha de Louro
1/2 copo de gordura da galinha
1 copo de canja da galinha
5 - 7 ovos, conforme o tamanho do bicho
Sumo de 2 Limões grandes ou 3 médios
Flor de Sal e Pimenta Moída
Salsa picada

Preparação:

Parta a galinha ou frango em quartos, cubra de água e coza demoradamente com sal grosso e um raminho de hortelã. Depois de um tempo de cozedura que é muito variável segundo a qualidade da ave, quando verificar que a carne já se destaca com facilidade dos ossos, escorra e deixe a arrefecer até estar morna e poder mexer-lhe bem sem se queimar.
Com uma concha de sopa retire com cuidado, da superfície da canja formada, meio copo da gordura do animal e ponha-a num tacho. Descasque e parta em meias rodelas muito finas a cebola e pique os dentes de alho muito fino. Refogue sem deixar alourar a cebola, a folha de louro e o alho na gordura da galinha e junte-lhe depois um copo de canja . Retire o louro e reserve.
Remova ossos e pele à galinha e desmanche a carne com os dedos de modo a ficarem pedaços que se possam comer sem necessidade de usar faca. Por norma não se usa a pele, mas pode mantê-la se tiver a certeza que é do agrado de todos os comensais. Ponha a carne no tacho e envolva.
Bata os ovos com flor de sal, pimenta e a salsa picada. No fim junte o sumo de limão.
Ponha de novo o tacho ao lume e junte os ovos, mexendo sempre, devagar, com o lume muito baixo, até ver que começou a engrossar. Tire imediatamente do lume e vaze numa terrina ou travessa frias, de modo a impedir que a cocção continue.
Esta operação é muito delicada ( é aqui que se dão os desastres), pois a carne, por cima, impede de ver o que está a suceder junto ao fundo, mais quente. Se não domina bem a técnica de engrossar ovos sem talhar, sugiro que faça a operação de engrossar do molho sem a carne lá dentro, misturando depois já fora do lume.
Sirva de imediato acompanhado de salada de alface (à parte) e batata frita fina ou arroz de manteiga. Consuma tudo pois é impossível reaquecer em condições um fricassé.

Nota:

Utilize os melhores animais que puder para este prato. Há que evitar, sobretudo, as magríssimas galinhas poedeiras velhas que aparecem em saldo nos supermercados. Se não tiver galinha gorda ou frango do campo, utilize pernas de frango de aviário, das que se vendem separadas.
Uma perna de perú pode ser opção a considerar, apesar de muito diferente o sabor final. No caso de usar só pernas, não terá gordura suficiente pelo que deverá usar azeite.
Como na receita anterior, também aqui terá como subproduto uma óptima canja para aproveitar.

terça-feira, 20 de maio de 2008

Frango Panado

Apesar das malditas calorias, os panados são reis na tabela de popularidade dos pratos lá de casa. Já assim era na casa de meus pais, passou esse gosto para as minhas filhas, de tal modo que, já farto de ver a mais velha a escarafunchar escalopes ou rissóis para reservar a idolatrada "pele" crocante, cheguei a fazer-lhe uns panados "especiais", tirinhas de massa de rissol, singela, panada dos dois lados, para deliciado petisco ... enfim!
Este frango panado é o mais simples dos pratos, não tem nada, é frango cozido em água e sal! E, no entanto, acompanhado de arroz de manteiga fumegante, salada e imprescindíveis pickles, (que só comemos nesta ocasião), pede meças e ganha a qualquer coronel americano do Kentucky ou seja de onde for.

Ingredientes:

1 Frango
Sal
Pimenta
Ovo e pão ralado
Óleo para fritar
Arroz carolino
Manteiga
Pickles de couve-flor

Preparação:

Parta o frango em metades e coza em água e sal. Retire o frango e deixe esfriar.
Depois de frio corte o frango em pedaços médios: perna, coxa, asas, o peito em dois ou três bocados, a carcaça que é óptima de roer. Polvilhe de longe e muito ao de leve com pimenta.
Passe estes bocados por ovo batido e pão ralado e frite até estarem louros.
Sirva com arroz de manteiga acabado de fazer, salada de alface e pickles de couve-flor.

Nota:

A água em que o frango cozeu, coada e com uma massinha miúda ou arroz, com os miúdos do frango aos pedacinhos, é uma canja perfeita, para mim suprema com umas gotas de sumo de limão.

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Rim com Batatas

O rim, até pelas funções fisiológicas que desempenha no animal vivo é, para muita gente, uma víscera maldita.
Que injustiça! Se é verdade que foi um filtro, não é menos verdade que tudo o que filtrou e excretou foi formado nos músculos com que nos deliciamos, de boa mente.
Dotado de um sabor forte e inconfundível, presta-se a inúmeras e requintadas utilizações culinárias, qual delas a mais saborosa.
Mas porque este blog não se dedica a tais vôos gastronómicos, vou deixar aqui a forma mais simples de transformar uns rins num prato delicioso e fácil de executar que era aguardado com ansiedade e que nunca, mas mesmo nunca, vi sobrar!

Ingredientes:

600g de Rim de porco, (ou vitela)
Alhos
Louro
Sal e Pimenta
Vinho branco
Banha de porco
500g de Batatas

Preparação:

Peça no talho para arranjarem os rins. Se comprou embalado (o que deve evitar), deite-o sobre a tábua e abra o rim ao meio. Retire toda a parte central com uma faca muito afiada, removendo todas as estruturas e linhas brancas, deixando assim apenas a parte maciça, exterior, do órgão.
Corte cada metade do rim em cubinhos pequenos, tempere com alhos, louro, sal, pimenta e cubra de vinho branco. Deixe a marinar umas horas.
Aqueça a banha numa frigideira e deite nela os cubinhos de rim, escorridos da marinada, deixando-os fritar rapidamente com lume muito forte, mexendo. Quando estiverem uniformemente fritos adicione a marinada e deixe reduzir até o molho recomeçar a fazer ruído de fritar e estar grosso. Se deixar fritar demais e a parte mais espessa do molho começar a "separar", junte mais um pouquinho de vinho branco e mexa para ligar.
Frite à parte batatas em cubinhos pequenos, de tamanho comparável ao da carne. Quando estiverem bem fritos e um pouco estaladiços por fora, junte-os à carne, envolva tudo rapidamente no molho e sirva logo.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Tortilha ( do Rey)

Na casa da minha infância chamava-se Pastelão e umas vezes era de batata, outras incluía restos de bacalhau desfiado em lascas. Nunca soube o porquê do inusitado baptismo, tanto mais que tinha sido aprendido pela minha mãe numa viagem ao Sul de Espanha, há 53 anos, viagem em que, supostamente, eu fui “feito”.
Só depois de adulto é que percebi que o “pastelão” da minha mãe era afinal a famosa Tortilla Espanhola, e feita rigorosamente segundo o preceito seguido no Sul, de onde a Tortilla é originária.
Como a maior parte dos pratos de ovos, normalmente classificados com uma singela estrelinha no que se refere a dificuldade, a sua execução é extraordinariamente simples se se pretender uma tortilha vulgar, omoleta de batatas, daquelas que se despacham quando só há 10 minutos para ficar pronta. Mas há as “outras”, claro; aquelas que só conseguimos comer lá, em Espanha, e das quais dizemos que têm de ter qualquer segredo que as transforma naquela maravilha cujo cheiro inunda a rua e nos obriga a entrar e comer uma “tapa”, “racione” ou até um “pincho”.
Respeitado como um quase-símbolo nacional, nenhum espanhol considera a Tortilla um prato rápido ou fácil. Pelo contrário, sabem que a sua perfeita obtenção é fruto de muito treino e rigor. O Rei D. Juan Carlos, adepto confesso de tortillas, quando está no Sul de Espanha, vai de propósito, anónimo, a Málaga, comer uma tortilla feita por uma espanhola particular, senhora já de idade e que , segundo o Rei, faz a melhor tortilla de Espanha. Deixarei aqui o preceito exaustivo dessa tortilha, obtido dessa senhora por interposta amiga. Com ele, seguindo sem qualquer transigência todos os passos indicados, todas as quantidades, tempos e temperaturas, poderá obter uma verdadeira “Tortilla do Rey”.

Ingredientes:

500g de batata
1 cebola branca, grande
3 dentes de alho
Azeite virgem
6 ovos
Sal e pimenta

Preparação:

Descasque e corte as batatas em falhas, que se obtêm cortando uma cunhas finas a partir da periferia para o centro, começa o corte da grossura de um lápis e acaba fininho lá para o meio da batata. Descasque e corte a cebola do mesmo modo. Pique os alhos muitíssimo fino.
Numa frigideira ponha estes três ingredientes, misturados e acamados, tempere com sal e pimenta, cubra-os (literalmente) de azeite e leve a lume forte. Assim que começar a borbulhar, baixe o lume para o mínimo e deixe cozer no azeite, sem mexer. ( Se fosse hoje dir-se-ia que se estava a confitar)
Quando a batata está quase completamente cozida no azeite, e é mesmo cozida, sem qualquer vestígio de alouramento ou fritura, (vê-se quando a parte mais fina das “falhas” se começa a desfazer), retire com uma escumadeira para uma tigela e guarde o azeite. Este azeite, que nunca chegou a fritar, e que por vezes é mais de um litro, pode e deve ser aproveitado para futuras tortilhas ou outros cozinhados.
Bata os ovos com um pouco de sal e pimenta e junte-os à batata. Envolva mas não mexa demais, para a batata não se tornar um puré.
Volte a pôr na frigideira algum azeite, do que utilizou para a cozedura das batatas, mas só 3-4 colheres de sopa, deixe aquecer moderadamente e vaze a massa da tortilha para a frigideira. Deixe fritar.
Alguns minutos depois chega-se a uma fase crucial da execução: a parte de cima está completamente líquida mas a parte encostada ao fundo da frigideira já está frita. Então, com uma espátula de madeira ou colher de pau, revolva sem dó toda a tortilha, que parece ficar um caos, toda desfeita. Esta operação destina-se a levar partes fritas para o interior, reduzir o tempo de cozedura e deixar a necessária humidade cremosa por dentro que caracteriza as grandes tortilhas, que não devem ser secas como um pudim de batatas nem ficarem a escorrer por não estarem cozinhadas por dentro.
Após esta mexida, ajeite com a colher os bordos da tortilha, levante um pouco mais o lume e deixe então fritar o lado de baixo, agitando a frigideira um pouco, de tempos a tempos, para deixar uma fritura uniforme. Quando o primeiro lado está frito, o que se nota pelo aroma de ovo frito, pelo ruído de fritar e pela espuma que se forma nos bordos, há que virá-la. Arranje uma tampa (melhor por causa da pega), ou um prato de rebordo baixo, maiores que a frigideira, deixe a tortilha deslizar para a tampa, como se estivesse a servir para uma travessa, escorra bem o resto de azeite quente para cima da tortilha, tape-a com a frigideira invertida e volte o conjunto sem hesitações. Já está!
Ponha de novo ao lume, agite a frigideira em movimentos circulares enérgicos para que os bordos se componham e deixe fritar um pouco com lume esperto. Este segundo lado é que vai decidir do grau de humidade interna, pelo que não deve ser muito demorado. Assim que estiver louro retire para papel absorvente e sirva morno, que é a temperatura em que melhor mostra todo o seu encanto.

Notas:

Noutras regiões de Espanha, junta-se salsa picada aos ovos; eu adoro com coentros, mas sou suspeito pois na verdade adoro coentros em tudo.
Uma das maneiras mais sofisticadas de comer Tortilla e que transforma o acto num verdadeiro exercício gourmet, é acompanhá-la com Allioli, um molho catalão mas cujo uso se estendeu por toda a Costa Brava . Pode preparar o Allioli, esmagando 4 ou 5 dentes de alho com um pouco de sal, juntar uma gema de ovo e com a varinha na velocidade baixa, bater e juntar uma chávena com azeite e óleo, fazendo uma espécie de maionaise de alho, forte. No fim junte um pouco de sumo de limão e coma os pedaços de Tortilla morna com um pouco deste delicioso molho

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Rissóis de Camarão

Antigamente não havia "miolo de camarão" congelado. Ainda bem porque assim, os rissóis da minha infância eram feitos com camarão do porto, também conhecido por Camarão de Espinho, mas que é pescado por toda a costa e, dantes, até em Lisboa, nas docas de Pedrouços ou da Trafaria e vendido depois às portas, a saltar na alcofa, transparentes como vidro.
Rissóis era um prato desejado se bem que não muito frequente pois a minha mãe não apreciava particularmente as horas perdidas a descascar o miúdo crustáceo. Então, quando o Alvarinho, um pescador de camarão e caranguejo, subia com a sua alcofa a escada de serviço, nós, eu e as minhas duas irmãs, lá íamos suplicar os rissóis, encetávamos uma demorada negociação em que prometíamos descascar os bichos, a minha mãe dizia que metade desaparecia durante a operação e por fim, muitas vezes, tínhamos sorte.
Depois era a festa da cozedura, as minhas irmãs cheias de pena dos bichinhos a serem fervidos em vida, eu maravilhado pela alquímica transformação que se operava; agora invisíveis, iguais à própria água em que morriam, logo a aparecerem do nada, todos em tons de salmão e branco.
Lá mais para o fim deixava-se a miudagem ajudar no panar, era uma discusão quem ficava com os dedos dentro do ovo batido, que o engraçado era fazer "bodega".
Na fritura todos rezávamos para que um ou outro se abrisse na frigideira, ficando inapresentável para a mesa e portanto logo comido ali, depois de devidamente disputado ou até dividido.


Nisto de Gastronomia, confesso, não sou lá muito democrata, não. Se é verdade que foi das cozinhas do povo que saíram as melhores obras-primas do nosso património gastronómico e culinário, não é menos verdade que, quando uma obra-prima de outros níveis de gosto cai nas garras da popularidade, é rapidamente abastardada pelo proverbial facilitismo apressado de quem acha que descobriu logo uma esperteza qualquer para fazer aquilo num instante.

Os rissóis são um exemplo disso: originários da cozinha burguesa, em que havia a obsessão da imitação das cozinhas nobres que emulavam, caíram na desgraça dos "salgadinhos de pastelaria" e, claro, não tardou que alguém os passasse a fazer com sopas de peixe ou marisco instantâneas, com um exemplar contado de miolo de camarão deslavado lá no meio, a mostrar que ali é gente séria, que não se engana ninguém...

Ingredientes:

Massa -
1 chávena de água
1 chávena muito cheia de farinha de trigo
1 colher de sopa de manteiga
1 casquinha de limão
1 pitada de sal


Recheio -
1 dente de alho
2 colheres de sopa de manteiga
1 colher de sopa de farinha de trigo
1 colher de sopa de Maizena
Raspa de Noz moscada
Sal e pimenta
Miolo de camarão
Leite de cozer o camarão
100ml de natas
2 gemas
Salsa picada


Preparação:

Ponha a água para a massa ao lume com o limão, manteiga e sal e, quando ferver, retire a casca de limão e introduza a farinha previamente peneirada, de uma só vez, mexendo energicamente com a colher de pau até estar cozida e a soltar-se do fundo do tacho. Passe-a para a pedra, ajeite em bola e deixe a arrefecer embrulhada num pano.

Claro que não vai comprar o raro e caríssimo camarão de Espinho para fazer rissóis!
Compre camarão congelado pequeno, mas crú, descongele-o rapidamente em água fria e coza-o em leite com algum sal mas muito menos que o normalmente usado para cozer marisco, dado que será o sal do recheio. Assim que o leite ferver, apague o lume e deixe o camarão lá dentro, tapado, durante 5 minutos. Descasque os camarões, reserve o miolo e volte a ferver no leite cascas e cabeças, durante 15-20 minutos , com o lume no mínimo para o leite não subir e transbordar. Coe e esprema as cabeças e cascas, com auxílio do utensílio para fazer puré, ou como puder. Reserve o líquido.
Derreta num tacho a manteiga, tempere com pimenta e uma pitada mínima de noz moscada, e aloure o dente de alho que é retirado assim que começa a ganhar cor. Adicione então as farinhas e envolva-as na gordura. Quando começar a querer fritar a farinha adicione aos poucos o leite de marisco mexendo sempre com as varas para não formar grumos. Deixe engrossar e adicione então as natas, nas quais bateu as gemas. Leve de novo ao lume, mexendo sempre e deixe espessar de novo. O recheio deve ficar com a consistência de leite creme, se necessário pode ter de acrescentar mais um pouco de leite. Prove, rectifique sal e pimenta, junte o miolo de camarão e a salsa, mexa, já fora do lume.

Estenda a massa na pedra, fina, com o rolo, deite uma colher de recheio, já frio, dobre a massa por cima e corte em meios círculos com o auxílio de um objecto redondo com bordo grosso, que esmague a massa um pouco antes de cortar. Os cortadores clássicos, muito finos no corte, funcionam mal e o rissol abre-se ao fritar.
Passe o rissol por ovo batido e pão ralado e frite em óleo quente. Neste caso o óleo é preferível pois quando se frita algo feito com manteiga em azeite, gera-se uma incongruência gustativa, indefinida mas detectável.

Acompanhe com um arroz e salada de alface.

Nota:

Com a técnica descrita, o rissol fica de uma delicadeza e sabor inexcedíveis.
Pode usar pescada, bacalhau ou outro peixe de lasca e, com o mesmo processo, fazer rissóis destes peixes.




terça-feira, 13 de maio de 2008

Coelho à São Cristóvão

Situada no limite entre os concelhos de Montemor-o-Novo, a que pertence, e o de Alcácer do Sal, a freguesia de S. Cristóvão e aldeia do mesmo nome é, como tantas do Alentejo interior, uma aldeia envelhecida e em vias de desertificação.
Destroço de si própria, foi como tantas outras aldeias do interior, incapaz de criar em si motivos que levassem as novas gerações a ficar. Pontuada aqui e ali por vestígios de um passado bem diferente da triste actualidade, S.Cristóvão lembra o tempo em que, só na freguesia funcionavam cinco escolas primárias, minas, diversas actividades económicas e culturais e, claro, a Pensão Canejo, fechada há quase quatro décadas, onde se vinha, e de longe, para provar os petiscos de Dona Alexandrina e, dentre eles, o único prato original da aldeia, por isso chamado Coelho à São Cristóvão.

Ingredientes:

1 Coelho
Alhos
Sal
Vinagre
Azeite
Coentros

Preparação:

Pise num almofariz alguns dentes de alho com sal grosso e um pouco de vinagre e esfregue o coelho com esta mistura, por fora e por dentro das cavidades abdominal e toráxica. Deixe assim para o dia seguinte.
Introduza dentro do coelho umas tiras de toucinho fresco e grelhe-o sobre lume de carvão, lentamente, virando quando necessário. Fica pronto em cerca de uma hora, conforme o tamanho do bicho.
Quando vir que está bem assado, tire-o do lume, parta-o em pedaços pequenos com uma faca ou tesoura de churrasco e ponha-os numa tigela.
Pique então muito fino vários dentes de alho e um ramo de coentros, salpique generosamente o coelho com eles e regue com azeite virgem e vinagre de vinho. Mexa.
Come-se como petisco, depois de completamente frio, ou como prato, acompanhado com batata cozida.

Nota:

Actualmente, usa-se por vezes apresentar o Coelho à S. Cristóvão, já desossado, acompanhado de pão alentejano.
Além desta particularidade gastronómica, S. Cristóvão tem ainda uma outra bem importante: é. desde há treze anos, a minha “aldeia”.

sábado, 10 de maio de 2008

Bacalhau à Brás ( História Triste de Um Crime)

Ao falar das 103 maneiras de preparar bacalhau descritas no seu “Pantagruel”, Jorge Brum do Canto diz que existem mais maneiras de fazê-lo do que escamas o bicho tem e do seu “direito a senhoria” na cozinha Portuguesa. É bem assim!
Séculos de apuro e convivência íntima com o Gadus morhua, fizeram dos cozinheiros e cozinheiras deste canto do mundo especialistas incontestados na arte do bacalhau. Esta coroa não serve, porém, só para enfeitar a testa da Cozinha Portuguesa; ela gera responsabilidade, mais que não seja na conservação desse imenso património gastronómico, cultural, construído no dia-a-dia das cozinhas anónimas de todo um povo, durante gerações.

Vou hoje, aqui, falar-vos de um crime hediondo que se passou bem à nossa volta, de que fomos cúmplices, nem que fosse por omissão de denúncia, e que devastou a riqueza sápida de um dos mais exigentes pratos de bacalhau: O Assassínio do Bacalhau à Brás !

Até há bem poucos anos, quinze ou vinte no máximo, o Bacalhau à Brás era um prato maior da cozinha da Estremadura, figurava nos cardápios dos melhores restaurantes da capital, ombreando com os maiores exemplos da Grande Cozinha. Era vulgar que fosse servido em banquetes de recepção a reis e presidentes estrangeiros quando nos visitavam. Era uma experiência que não se esquecia!
Depois, num dia triste qualquer, um qualquer também triste cozinheiro apressado, descobriu as batatas fritas palha, de pacote, achou por certo que tinha descoberto a pólvora e transformou alegremente o Bacalhau à Brás no “hamburger” do bacalhau.

Fazer qualquer coisa “à Brás” passou a ser sinónimo de coisinha rápida e prática, uma espécie de “fast food” caseiro, o Bacalhau à Brás assim abastardado invadiu tudo, teve mesmo honras de apadrinhamento por grandes nomes da nossa cozinha mais mediática, e, consequentemente, desapareceu dos sítios onde era oferecido a apetites mais exigentes e menos dados a tais popularidades.

Deixo aqui, como modesto contributo para a memória deste delicioso monumento da nossa Cozinha, o preceito para a execução do Bacalhau à Brás da minha juventude, fixado por Maria de Lourdes Modesto na Cozinha Tradicional Portuguesa.

Ingredientes:

400g de Bacalhau
500g de Batata
6 Ovos
3 colheres de sopa de Azeite
3 Cebolas
1 dente de Alho
Salsa
Sal e Pimenta
Azeitonas Pretas de cura natural
Óleo para fritar

Preparação:

Retire a pele e as espinhas ao bacalhau previamente demolhado. Esta operação pode ser muito facilitada se escaldar brevemente o bacalhau, vertendo sobre as postas água bem quente e deixando o bacalhau nesta água alguns segundos.
Desfie o bacalhau com as mãos e reserve.
Prepare então as batatas, descascando-as e cortando-as em palha. Cortar em palha é cortar em palitos com cerca de 3 milímetros de lado, nunca mais. Frite estas batatas em óleo quente e retire-as assim que começam a alourar, o que é rápido. Reserve-as.
Pique o alho muito fino e as cebolas em rodelas finíssimas e refogue lentamente em lume médio, num tacho de fundo espesso, até a cebola estar cozida e transparente.
Junte então o bacalhau desfiado e mexa para que fique bem envolvido com a cebola e o azeite.
Junte então as batatas ao bacalhau e, com o tacho sobre o lume baixo/médio, acrescente os ovos batidos e temperados com sal e pimenta. Mexa com uma colher ou garfo de pau, continuamente, até o ovo se tornar cremoso, mas cozido. Passe imediatamente o cozinhado para uma travessa fria, para que a cozedura não continue. Salpique com salsa picada e sirva logo.
Acompanha-se com azeitonas pretas miúdas, ditas “galegas” e curtidas pelo método tradicional. Não use as modernas azeitonas pretas grandes e redondas, com o interior acinzentado pela curtimenta química.

Nota:

Deguste com a “devoção” que este prato merece, recorde as papas de ovo abatatado e engordurado que seguramente tão bem conhece, perceba porque não pude deixar de falar em “crime”!

sexta-feira, 9 de maio de 2008

Perninhas de Rã

Quando eu era miúdo, pernas de rã era uma daquelas comidas que se sabia ser vagamente excêntrica e "fina" mas que jamais se sonharia comer ou sequer desejar. Um pouco como o caviar: esse, ao fim de muitos anos a pedir, a minha mãe lá condescendeu e apareceu uma latinha minúscula, russa, e eu lá o fui provar, excitado como se daquilo dependesse a vida. Foi a unica vez que comi caviar! Quarenta anos passados, lembro um sabor salgadíssimo a peixe apodricado, um vómito. Se calhar hoje gostaria, mas a vontade foi-se para sempre.

Mas quanto às míticas pernas de rã não houve traumas infantis porque, simplesmente, nunca apareceram. Encontrei-as anos depois como petisco de cervejaria, uma espécie de tremoços puxa-cerveja, naquela que viria a ser, ainda vinte anos depois, a minha cidade adoptiva: Montemor-o-Novo.
Aqui, os miúdos caçavam os batráquios no Verão e vendiam as pernas às cervejarias e cafés, que as mantinham congeladas no resto do ano e eram vulgares, sem qualquer espécie de aura ou de mito; comiam-se e pronto!

Provei e gostei - gostei mesmo muito - passou a ser petisco obrigatório sempre que passava por Montemor. Depois encontrei-as à venda na Makro, vinham da Malásia, congeladas.
Experimentei as preparações mais variadas e, por fim, com a ajuda crítica implacável das minhas filhas, então crianças, ficou como preferida a que aqui vos deixo:

Ingredientes:

Pernas de Rã, congeladas
Alhos
Sumo de Limão
Sal e Pimenta
Farinha, Ovo e Pão Ralado, para panar.
Óleo para fritar

Preparação:

As pernas de rã vendem-se em blocos congelados, como os camarões, mas são embaladas uma a uma numa pequena manga plástica. Cada saquinho tem, na realidade, as duas pernas de uma rã, unidas pela cintura. Conforme o seu tamanho, que varia bastante de marca para marca, costumo contar com entre 7 e 10 pares por pessoa, ou seja, entre 14 e 20 pernas.
Ponha as pernas de rã a descongelar em água fria, dentro dos seus invólucros.
Quando estiverem descongeladas, corte com uma faca afiada ou tesoura um pedaço de coluna vertebral que vem, por norma agarrado às pernas e também qualquer pedaço do pé. A parte de uma "perna" que se come é, por comparação, a que corresponde à porção da cintura ao tornozelo.
Disponha num prato e tempere com os temperos indicados. Regue com abundante sumo de limão e deixe a marinar entre 20 a 30 minutos, não mais para não cozer quimicamente a carne.
Escorra, passe cada par por farinha, ovo batido e pão ralado e frite em óleo quente.
Assim que saírem da fritura, regue com sumo de limão fresco e sirva logo, acompanhadas por um risotto branco, feito com manteiga de vaca e salada a gosto.

Nota:

São também excelentes frias, no dia seguinte, o que as torna indicadas para saídas, praia, etc.

.

quinta-feira, 8 de maio de 2008

Caldeirada

A minha bisavó materna, de seu nome Felicidade e que eu nunca conheci, trabalhou toda a vida como funcionária da Praça da Ribeira, em Lisboa, nos tempos em ali se vendia , pela mão de varinas e dos próprios pescadores, todo o peixe que a capital comia.
Não é assim de estranhar que o peixe fosse rei na alimentação familiar e que essa tradição tivesse passado as gerações até hoje, em que continua preferido apesar de ter deixado de ser alimento de todas as bolsas e, muitas vezes, ser difícil "lá chegar".
Mas vale o sacrifício económico e, se não puder deixar de ser, congelado também é peixe, diferente é certo, mas peixe.
Nunca me consegui converter foi a lombinhos, medalhões, espetadinhas feitas, douradinhos e quejandos, hoje até se fazem umas mistelas de peixe (?) moído, ditos nugets! Mas isso não entra mesmo na minha cozinha; antes a fome!
A Caldeirada é o mais português dos pratos de peixe. E único! Basta passar o Rio Minho e acabou-se, na Galiza piscatória não há uma sopa de pescado sequer, digna desse nome. Pela Europa fora aparecem vários guisados e sopas de pescado que são isso mesmo e apenas, guisados. A Caldeirada é mesmo e só, uma relíquia preciosa da nossa identidade gastronómica.
Mas Caldeirada não é peixe guisado? Não!
Caldeirada é o resultado de um ritual complexo e delicado, cuja quebra inadvertida é de imediato punida pela transformação em "peixe guisado com batatas e tomate". Sem retorno.
Quem puder, aprenda, quem souber, não esqueça. Este é um pitéu dos deuses e um legado que temos obrigação de fazer, a preceito.

Ingredientes:

Safio (Congro), postas da barriga.
Raia
"Caldeirada" ( Ruivo, Rascasso, Tamboril, Peixe Galo, Moreia, Cação, Patarroxa, etc.)
Camarão (versão de Cascais e Setúbal)
Amêijoa ou Berbigão miúdos (versão do Algarve)
1 ou 2 Sardinhas (versão à "fragateiro" de Lisboa e da Nazaré)
Cebolas
Tomate muito maduro (no Verão)
Polpa de Tomate
Pimento Verde
Malagueta (facultativo)
Sal e Pimenta moída
Vinho Branco
Alhos
Louro
Ramo de Salsa
Azeite

Preparação:

O Safio e a Raia são obrigatórios. Dos outros escolha mais três ou quatro, não compre as "caldeiradas" já feitas porque são sempre logro. o peixe deve ser partido em pedaços de tamanho coerente entre si e deve permitir que todos os comensais tenham possibilidade de provar todas as variedades.
Escolha um tacho ou panela largos, de modo a evitar muitas repetições nas camadas. A caldeirada é feita de modo estratificado rigoroso; a primeira camada, no fundo, é muito variável: por norma forro o fundo com rodelas de cebola, grossas, de resto esta é a única camada de cebola que uma caldeirada leva. Nas versões que usam camarão ou bivalves, são estes a camada do fundo (para não "pegar") e a cebola entra em segundo lugar. Ponha então uma camada de rodelas de batata e depois uma camada de peixe variado (não o safio nem a raia). Chegou a altura de temperar: directamente sobre o peixe ponha o sal e a pimenta, a malagueta se quiser, os alhos, 1 ou 2 folhas de louro.
Sobre o peixe temperado ponha então o pimento verde cortado em tiras. Não esqueça que o pimento funciona aqui como tempero e que a moderação é essencial; aqui o sabor - rei é a peixe e a mar, não a horta! Sobre as tiras de pimento vem então o tomate. Se for no Verão e tiver tomate amadurecido naturalmente e muito maduro utilize-o com abundãncia, metade em pedaços grosseiros, metade passado pela varinha. Se não for Verão, use tomate pelado de lata, meio desfeito à mão e polpa de tomate. Neste caso acrescente um cálice de vinagre de vinho ou sumo de limão, para compensar a falta em ácido dos tomates de conserva.
A partir daqui repete rigorosamente a ordem a partir da batata: Batata, peixe (agora a Raia e o Safio), tempero, Pimento, Tomate.
A caldeirada perfeita tem só duas camadas de peixe. Claro que, se não coube nas anteriores e ainda tem peixe para pôr, poderá ter de fazer uma terceira camada, mas atenção, sempre respeitando os estratos, nada de peixe sobre peixe ou batata sobre batata.
A última camada de cima deve ser tomate. Se está a fazer a versão que leva a sardinha, esta é, na Caldeirada, apenas um tempero que se retira e rejeita no fim. Ponha então um ramo de Salsa e, eventualmente, a Sardinha a fechar.
Regue generosamente com Azeite Virgem e adicione 1 ou 2 copos de Vinho Branco. Depende bastante da arrumação que conseguiu dar ao tacho e da quantidade de tomate usada. De qualquer modo, o nível de líquido deve ficar uns dois dedos abaixo do nível do tomate superior.

Dê uma agitadela sóbria ao tacho, para soltar do fundo a primeira camada, se esta for de cebola. Se não for não faça nada.

Tape e ponha ao lume. Após ferver conte 25 a 35 minutos com lume baixo. A batata desfaz um pouco o que só melhora o molho. Apague o lume e espere uns minutos antes de servir.

Sirva com cuidado, nada de conchas ou despachar "à cantina". A caldeirada é desconstruída e servida rigorosamente na ordem inversa em que foi feita.

Há quem aprecie o sabor avinagrado de uma salada de alface com a caldeirada; nesse caso sirva a salada num prato à parte para evitar escorrências.

Notas:

A Caldeirada "pede" um tinto com algum corpo e adstringência, que deixe o palato lavado entre cada espécie degustada.
Use sal marinho não refinado (compra-se na secção de produtos naturais) ou Flor de Sal integral.
Por mais vermelho que se apresente, o tomate fresco fora de época não serve para este prato.
As postas fechadas do Safio são incomestíveis. No entanto o preço do peixe inteiro justifica por vezes a sua compra assim. Para aproveitar as postas fechadas, que são mais de meio peixe, congele-as ligeiramente, de modo a ficarem duras mas cortáveis, corte-as em fatias de meio centímetro, salgue muito ao de leve e frite sem qualquer revestimento, demoradamente em lume médio, para ficarem crocantes. São um petisco delicioso.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Iscas com Elas

As iscas, como as favas, não são de meios termos: amam-se ou odeiam-se!
Eu sou dos que amam e recordo com nostalgia um pouco envergonhada os tempos em que fruía o prazer de frigideiras que, ano após ano, cozinhavam toneladas de fígado sem nunca verem barrela, apurando um molho eterno que escorria do pão a cada dentada.
Quantas vezes cheguei ao Porto de comboio, saía em Campanhã e antes de qualquer outra coisa, subia Pinto Bessa, atravessava o Bonfim e ia direitinho a uma tasca ali para Barros de Lima onde me esperava uma deliciosa isca no pão, comida numa estranha posição, não fosse algum pingo cair na gravata, que nessa altura trabalhava-se de gravata e tudo o mais.
Hoje as iscas sofreram rudes e irreparáveis golpes e não falo da questão das frigideiras, mas da disposição legal que impede a venda do baço a pretexto de uma qualquer profilaxia da Doença das Vacas Loucas, metendo as vísceras todas no mesmo saco, como se houvesse alguma doença dos Porcos Loucos!
Claro que alguns de nós temos a sorte de viver no campo ou conhecer quem mate porco, mas para a esmagadora maioria o molho de iscas nunca mais foi o que era.
Para todos esses, vou hoje divulgar em primeira mão um truque precioso para refazer o velho molho em todo o seu antigo esplendor; e sem baço!


Ingredientes:

Fígado de porco cortado muito fino
Baço de porco (se possível)
Alhos
Louro
Sal e Pimenta
Vinagre de vinho
Vinho Branco
Banha
Farinha
Batatas

Preparação:

Ponha as iscas numa tigela, tempere com os alhos esmagados, sal, pimenta, louro e cubra com vinho branco.
Se arranjou baço, abra-o com uma faca afiada, longitudinalmente, coloque-o com o lado cortado para cima, sobre uma tábua ou pedra e raspe-o com a parte romba da faca, espremendo e fazendo sair à frente da lâmina um líquido grosso, vermelho escuro, que deve ir recolhendo e dissolvendo num pouco de vinagre de vinho que junta depois à marinada.
Se não arranjou baço, reserve uma isca das “interiores”, isto é das que têm ambos os lados cortados, parta-a em pedacinhos, coloque-os num copo misturador com duas colheres de sopa de vinagre e outras duas de vinho branco e triture tudo com a varinha até estar com uma textura lisa. Misture então à marinada.

Deve deixar as iscas a marinar várias horas, de preferência de um dia para o outro, dentro do frigorífico e fechadas para não transmitir cheiros e sabor a outros alimentos, o que sucede facilmente.

Derreta banha de porco numa frigideira e frite as iscas dos dois lados antes de juntar a marinada. Mexa sempre para não fazer grumos e deixe apurar, virando as iscas e mudando-as de posição na frigideira, agora com o lume baixo, fervinhando.

Quando achar que estão prontas, junte um copo de água em que dissolveu um pouco de farinha, para homogeneizar o molho e aveludá-lo ligeiramente, mexendo sempre.

Comem-se com batatas cozidas com casca, que cada um descasca no prato. Se forem batatas novas, nem isso é preciso. De qualquer modo é essencial que sejam bem molhadas com o molho das iscas.

terça-feira, 6 de maio de 2008

Torricado

O Toneca, além de funcionário da Câmara Municipal da Azambuja era também o mestre incontestado do Torricado e oficiava em tudo o que era acontecimento autárquico, executando essa singela delícia ribatejana da beira-rio para tudo o que era visitante e dignitário que comiam e, claro,choravam por mais...

Acompanhar uma boa posta de bacalhau assado na brasa, esbugalhado com azeite e alho, com um fervente torricado feito pelo Toneca, no meio de um pomar de diospiros, sobre o Tejo e as suas valas, foi uma experiência inesquecível que tento repetir, imitando com rigor cada gesto aprendido com o Toneca, sempre que faço mais uma vez, um Torricado!


Ingredientes:

Merendeiras (de ontem)
Alhos
Azeite Virgem
Sal grosso

Preparação:

Escolha merendeiras que não tenham muita "alma", quer dizer que sejam relativamente homogéneas por dentro, sem grandes bolhas e buracos.
Abra as merendeiras ao meio, como se fosse para fazer uma sanduíche e, com a ponta de uma faca bem afiada, retalhe o miolo profundamente mas sem atingir a côdea, em quadrados de cerca de 2,5cm de lado (a grossura de um dedo).
Ponha as metades a grelhar sobre o carvão (ou num grelhador eléctrico) primeiro o lado da côdea, que deve ficar estaladiço mas não tostado, depois o lado do miolo que deve ficar louro como uma torrada.
Esfregue então um dente de alho por toda a superfície tostada, do lado do miolo. Cada metade de merendeira consome assim meio dente de alho grande.
Salpique então a merendeira com sal grosso e sacuda o excesso. O que interessa é que algum fique retido nas fendas do quadriculado que entretanto abriu um pouco com a tostagem. Regue com um fio de azeite virgem, mais ou menos abundante conforme o gosto, por toda a superfície e volte a pôr a grelhar só do lado do miolo. Está pronto quando se ouvir um ruído parecido com o som de fritar (o cantar do torricado).
Serve como acompanhamento de bacalhau assado ou sardinhas, também assadas.

Notas:

Ou pode comê-lo só, com um vinho Ribatejano, que é de deixar qualquer Pão de Alho italiano a morrer de inveja!

Regressado a estas andanças após a Caminhada por terras célticas, poderá ver a partir de hoje, outras aventuras gastronómicas, mais livres, em Outras Comidas.