quinta-feira, 8 de maio de 2008

Caldeirada

A minha bisavó materna, de seu nome Felicidade e que eu nunca conheci, trabalhou toda a vida como funcionária da Praça da Ribeira, em Lisboa, nos tempos em ali se vendia , pela mão de varinas e dos próprios pescadores, todo o peixe que a capital comia.
Não é assim de estranhar que o peixe fosse rei na alimentação familiar e que essa tradição tivesse passado as gerações até hoje, em que continua preferido apesar de ter deixado de ser alimento de todas as bolsas e, muitas vezes, ser difícil "lá chegar".
Mas vale o sacrifício económico e, se não puder deixar de ser, congelado também é peixe, diferente é certo, mas peixe.
Nunca me consegui converter foi a lombinhos, medalhões, espetadinhas feitas, douradinhos e quejandos, hoje até se fazem umas mistelas de peixe (?) moído, ditos nugets! Mas isso não entra mesmo na minha cozinha; antes a fome!
A Caldeirada é o mais português dos pratos de peixe. E único! Basta passar o Rio Minho e acabou-se, na Galiza piscatória não há uma sopa de pescado sequer, digna desse nome. Pela Europa fora aparecem vários guisados e sopas de pescado que são isso mesmo e apenas, guisados. A Caldeirada é mesmo e só, uma relíquia preciosa da nossa identidade gastronómica.
Mas Caldeirada não é peixe guisado? Não!
Caldeirada é o resultado de um ritual complexo e delicado, cuja quebra inadvertida é de imediato punida pela transformação em "peixe guisado com batatas e tomate". Sem retorno.
Quem puder, aprenda, quem souber, não esqueça. Este é um pitéu dos deuses e um legado que temos obrigação de fazer, a preceito.

Ingredientes:

Safio (Congro), postas da barriga.
Raia
"Caldeirada" ( Ruivo, Rascasso, Tamboril, Peixe Galo, Moreia, Cação, Patarroxa, etc.)
Camarão (versão de Cascais e Setúbal)
Amêijoa ou Berbigão miúdos (versão do Algarve)
1 ou 2 Sardinhas (versão à "fragateiro" de Lisboa e da Nazaré)
Cebolas
Tomate muito maduro (no Verão)
Polpa de Tomate
Pimento Verde
Malagueta (facultativo)
Sal e Pimenta moída
Vinho Branco
Alhos
Louro
Ramo de Salsa
Azeite

Preparação:

O Safio e a Raia são obrigatórios. Dos outros escolha mais três ou quatro, não compre as "caldeiradas" já feitas porque são sempre logro. o peixe deve ser partido em pedaços de tamanho coerente entre si e deve permitir que todos os comensais tenham possibilidade de provar todas as variedades.
Escolha um tacho ou panela largos, de modo a evitar muitas repetições nas camadas. A caldeirada é feita de modo estratificado rigoroso; a primeira camada, no fundo, é muito variável: por norma forro o fundo com rodelas de cebola, grossas, de resto esta é a única camada de cebola que uma caldeirada leva. Nas versões que usam camarão ou bivalves, são estes a camada do fundo (para não "pegar") e a cebola entra em segundo lugar. Ponha então uma camada de rodelas de batata e depois uma camada de peixe variado (não o safio nem a raia). Chegou a altura de temperar: directamente sobre o peixe ponha o sal e a pimenta, a malagueta se quiser, os alhos, 1 ou 2 folhas de louro.
Sobre o peixe temperado ponha então o pimento verde cortado em tiras. Não esqueça que o pimento funciona aqui como tempero e que a moderação é essencial; aqui o sabor - rei é a peixe e a mar, não a horta! Sobre as tiras de pimento vem então o tomate. Se for no Verão e tiver tomate amadurecido naturalmente e muito maduro utilize-o com abundãncia, metade em pedaços grosseiros, metade passado pela varinha. Se não for Verão, use tomate pelado de lata, meio desfeito à mão e polpa de tomate. Neste caso acrescente um cálice de vinagre de vinho ou sumo de limão, para compensar a falta em ácido dos tomates de conserva.
A partir daqui repete rigorosamente a ordem a partir da batata: Batata, peixe (agora a Raia e o Safio), tempero, Pimento, Tomate.
A caldeirada perfeita tem só duas camadas de peixe. Claro que, se não coube nas anteriores e ainda tem peixe para pôr, poderá ter de fazer uma terceira camada, mas atenção, sempre respeitando os estratos, nada de peixe sobre peixe ou batata sobre batata.
A última camada de cima deve ser tomate. Se está a fazer a versão que leva a sardinha, esta é, na Caldeirada, apenas um tempero que se retira e rejeita no fim. Ponha então um ramo de Salsa e, eventualmente, a Sardinha a fechar.
Regue generosamente com Azeite Virgem e adicione 1 ou 2 copos de Vinho Branco. Depende bastante da arrumação que conseguiu dar ao tacho e da quantidade de tomate usada. De qualquer modo, o nível de líquido deve ficar uns dois dedos abaixo do nível do tomate superior.

Dê uma agitadela sóbria ao tacho, para soltar do fundo a primeira camada, se esta for de cebola. Se não for não faça nada.

Tape e ponha ao lume. Após ferver conte 25 a 35 minutos com lume baixo. A batata desfaz um pouco o que só melhora o molho. Apague o lume e espere uns minutos antes de servir.

Sirva com cuidado, nada de conchas ou despachar "à cantina". A caldeirada é desconstruída e servida rigorosamente na ordem inversa em que foi feita.

Há quem aprecie o sabor avinagrado de uma salada de alface com a caldeirada; nesse caso sirva a salada num prato à parte para evitar escorrências.

Notas:

A Caldeirada "pede" um tinto com algum corpo e adstringência, que deixe o palato lavado entre cada espécie degustada.
Use sal marinho não refinado (compra-se na secção de produtos naturais) ou Flor de Sal integral.
Por mais vermelho que se apresente, o tomate fresco fora de época não serve para este prato.
As postas fechadas do Safio são incomestíveis. No entanto o preço do peixe inteiro justifica por vezes a sua compra assim. Para aproveitar as postas fechadas, que são mais de meio peixe, congele-as ligeiramente, de modo a ficarem duras mas cortáveis, corte-as em fatias de meio centímetro, salgue muito ao de leve e frite sem qualquer revestimento, demoradamente em lume médio, para ficarem crocantes. São um petisco delicioso.

7 comentários:

cupido disse...

yEssa descrição a esta hora é um atentado... Efectivamente uma caldeirada tem que ser feita assim (claro que, para mim, os peixes de base são a raia, o safio e o tamboril; bivalves, camarões, lulas e afins não entram); apenas um reparo, o azeite não tem que ser só virgem, tem que ser bom.
Que vontade de ir à peixaria...

edinha disse...

Uma explicação brilhante para se fazer uma caldeirada de mestre :)
Abraço

Isabel de Miranda disse...

LPontes caldeirada para mim é daquelas comidas que adoro!!!Eu também não coloco(bivaldes nem camarões)mas raia e tamboril é dos peixes que mais gosto da caldeirada.Eu tenho um tacho enorme que é só para a caldeirada(claro só faço quando tenho mais gente para comer,porque os filhos não gostam)Luis eu tenho umas pedras que apanhei na praia já à muitos anos(talves 13 anos)que foram muito bém lavadas e fervidas em várias águas,e que é para a minha caldeirada(não é para a sopa da pedra(sorriso).Sabe foi uma peixeira da Ribeira que me ensinou,que disse a caldeirada não se mexe!!!!Então eu coloco as pedras no fundo do tacho a cobrir o dito,e depois faço como o Luis coloco os ingredientes por camadas.A caldeirada nunca pega e não nos precissamos de preocupar é só colocar no lume e depois devorar.Fiquei com vontade de fazer a dita ao ler este poste um muito obrigada.

anna disse...

Já li e reli não sei quantas vezes o seu texto e o resultado é ter ficado com uma grande vontade de comer caldeirada...
Eu não gosto nada é daquelas espinhas chatas do safio, o tamboril, a raia e o cação são os meus preferidos.
Para mim, isto é o Luis no seu melhor!

diogo disse...

pois é anna , o safio tem que ser do umbigo para cima , postas da barriga . sabe luis , em peniche , as sardinhas são substituídas por uma ou duas navalheiras , às quais se deu um murro e se partiu a casca . Caldirada , nem é um dos maus pratos preferidos , mas um sequinho de pata-rôxa à moda da Nazaré....

turbolenta disse...

A melhor caldeirada que comi foi feita por um pescador amigo do meu pai, em Setúbal.
A partir daí colhi os ensinamentos que ele me deu (eu era muito jovem) e adorei aquele delicioso sabor.
Hoje faço-a quase de igual modo à que publicou.Só não uso nem vinho nem água.O molho´resulta apenas do líquido que sai do tomate bem maduro e da cebola (Muito de cada).E costumo pôr sempre também pimento vermelho fatiado.
Nunca a comi acompanhada de salada e a não ser que se seja fanático por saladas, mas parece-me não ser iguaria que ligue bem com a acaldeirada.
bom fim de semana

ines disse...

Desculpe-me a minha arrogancia mas sou da Galicia, e a caldeirada, muito parecida a que voce indica e a tipica e quando digo tipica e tipica... caldeirada galega. A unica diferencia e que na minha casa pelo menos, se adiciona tambem colorau doce.
Mas em todo caso, acho que e ou a sua avo foi... uma GRANDE COZINHEIRA!!!
E mais uma coisinha.... uma indicaçao, na galicia nunca se toma raia nos meses de verao (so nos que nao tem R) se diz que esta em comida e que e má... E um tomate de "verdade" e sempre um bom tomate