Antigamente não havia "miolo de camarão" congelado. Ainda bem porque assim, os rissóis da minha infância eram feitos com camarão do porto, também conhecido por Camarão de Espinho, mas que é pescado por toda a costa e, dantes, até em Lisboa, nas docas de Pedrouços ou da Trafaria e vendido depois às portas, a saltar na alcofa, transparentes como vidro.
Rissóis era um prato desejado se bem que não muito frequente pois a minha mãe não apreciava particularmente as horas perdidas a descascar o miúdo crustáceo. Então, quando o Alvarinho, um pescador de camarão e caranguejo, subia com a sua alcofa a escada de serviço, nós, eu e as minhas duas irmãs, lá íamos suplicar os rissóis, encetávamos uma demorada negociação em que prometíamos descascar os bichos, a minha mãe dizia que metade desaparecia durante a operação e por fim, muitas vezes, tínhamos sorte.
Depois era a festa da cozedura, as minhas irmãs cheias de pena dos bichinhos a serem fervidos em vida, eu maravilhado pela alquímica transformação que se operava; agora invisíveis, iguais à própria água em que morriam, logo a aparecerem do nada, todos em tons de salmão e branco.
Lá mais para o fim deixava-se a miudagem ajudar no panar, era uma discusão quem ficava com os dedos dentro do ovo batido, que o engraçado era fazer "bodega".
Na fritura todos rezávamos para que um ou outro se abrisse na frigideira, ficando inapresentável para a mesa e portanto logo comido ali, depois de devidamente disputado ou até dividido.
Nisto de Gastronomia, confesso, não sou lá muito democrata, não. Se é verdade que foi das cozinhas do povo que saíram as melhores obras-primas do nosso património gastronómico e culinário, não é menos verdade que, quando uma obra-prima de outros níveis de gosto cai nas garras da popularidade, é rapidamente abastardada pelo proverbial facilitismo apressado de quem acha que descobriu logo uma esperteza qualquer para fazer aquilo num instante.
Os rissóis são um exemplo disso: originários da cozinha burguesa, em que havia a obsessão da imitação das cozinhas nobres que emulavam, caíram na desgraça dos "salgadinhos de pastelaria" e, claro, não tardou que alguém os passasse a fazer com sopas de peixe ou marisco instantâneas, com um exemplar contado de miolo de camarão deslavado lá no meio, a mostrar que ali é gente séria, que não se engana ninguém...
Ingredientes:
Massa -
1 chávena de água
1 chávena muito cheia de farinha de trigo
1 colher de sopa de manteiga
1 casquinha de limão
1 pitada de sal
Recheio -
1 dente de alho
2 colheres de sopa de manteiga
1 colher de sopa de farinha de trigo
1 colher de sopa de Maizena
Raspa de Noz moscada
Sal e pimenta
Miolo de camarão
Leite de cozer o camarão
100ml de natas
2 gemas
Salsa picada
Preparação:
Ponha a água para a massa ao lume com o limão, manteiga e sal e, quando ferver, retire a casca de limão e introduza a farinha previamente peneirada, de uma só vez, mexendo energicamente com a colher de pau até estar cozida e a soltar-se do fundo do tacho. Passe-a para a pedra, ajeite em bola e deixe a arrefecer embrulhada num pano.
Claro que não vai comprar o raro e caríssimo camarão de Espinho para fazer rissóis!
Compre camarão congelado pequeno, mas crú, descongele-o rapidamente em água fria e coza-o em leite com algum sal mas muito menos que o normalmente usado para cozer marisco, dado que será o sal do recheio. Assim que o leite ferver, apague o lume e deixe o camarão lá dentro, tapado, durante 5 minutos. Descasque os camarões, reserve o miolo e volte a ferver no leite cascas e cabeças, durante 15-20 minutos , com o lume no mínimo para o leite não subir e transbordar. Coe e esprema as cabeças e cascas, com auxílio do utensílio para fazer puré, ou como puder. Reserve o líquido.
Derreta num tacho a manteiga, tempere com pimenta e uma pitada mínima de noz moscada, e aloure o dente de alho que é retirado assim que começa a ganhar cor. Adicione então as farinhas e envolva-as na gordura. Quando começar a querer fritar a farinha adicione aos poucos o leite de marisco mexendo sempre com as varas para não formar grumos. Deixe engrossar e adicione então as natas, nas quais bateu as gemas. Leve de novo ao lume, mexendo sempre e deixe espessar de novo. O recheio deve ficar com a consistência de leite creme, se necessário pode ter de acrescentar mais um pouco de leite. Prove, rectifique sal e pimenta, junte o miolo de camarão e a salsa, mexa, já fora do lume.
Estenda a massa na pedra, fina, com o rolo, deite uma colher de recheio, já frio, dobre a massa por cima e corte em meios círculos com o auxílio de um objecto redondo com bordo grosso, que esmague a massa um pouco antes de cortar. Os cortadores clássicos, muito finos no corte, funcionam mal e o rissol abre-se ao fritar.
Passe o rissol por ovo batido e pão ralado e frite em óleo quente. Neste caso o óleo é preferível pois quando se frita algo feito com manteiga em azeite, gera-se uma incongruência gustativa, indefinida mas detectável.
Acompanhe com um arroz e salada de alface.
Nota:
Com a técnica descrita, o rissol fica de uma delicadeza e sabor inexcedíveis.
Pode usar pescada, bacalhau ou outro peixe de lasca e, com o mesmo processo, fazer rissóis destes peixes.
quarta-feira, 14 de maio de 2008
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
9 comentários:
gostei dessa receita, esse recheio assim feito deve ser muito cremoso..
parabéns pelo blog,gostei muito do que li..
Amor e Sabores
já estou a salivar só de pensar em rissóis. rissóis de compra nunca.
já estou a imaginar a massa levemente crocante pelo pão ralado e dentro o recehio de camarão suave...
Gostei muito do que li.
Obrigada pela historia e pela receita é claro.
O Luis tem o dom de nos fazer viajar no tempo e de nos teleportar ao mundo imaginário dos dabores...
Voltando à terra: não consigo fazer uma massa de rissóis de jeito, mas faço um recheio de camarão muito bom (modéstia à parte). Normalmente faço uma parceria, eu faço o recheio, uma amiga faz a massa, passamos uma tarde de sábado divertida e, no fim, dividimos o resultado.
É engraçado... Cá em Espinho esse camarão da costa é conhecido como camarão da Aguda. Parece que ninguém lhe quer o crédito... :)
Mariana
(http://caosnacozinha.wordpress.com)
Magistral descrição de uma comida deliciosa... Há uns anos fazia uns de bacalhau, quase com esta "calma" e efectivamente eram uma maravilha.
Mais uma viagem às memórias de infância...
A minha mãe era exímia "fazedora" de rissóis.
Eram excelentes.
De camarão só nas férias, depois de uma manhã passada nas rochas da praia do Sul, camaroeiro em punho, e com a promessa de que, depois de "pescar" os bichinhos, eu também me comprometia na descasca.
Mas o mais comum era serem de peixe, dos restos do peixe assado, com o recheio subtilmente temperado pelo molho do assado.
E toda a gente gabava os ditos rissóis...
E dizia a minha mãe: É muito fácil de fazer. É a receita da Maria de Lurdes Modesto.
Obrigada uma vez mais pelo blog e pelas memórias
Para além os rissóis, que adoro, partilho o espanto pela alquimia. A mudança de um bicho mole e incolor, numa espécie laranja com topete, era sempre um passo de magia. É surpreendente, ver o nossso olhar denunciado por outro.
Acabo de experimentar esta receita. Os rissóis ficaram fantásticos, e todo o mérito é da receita pois foi a primeira vez que experimentei fazer rissóis. Obrigada!
Enviar um comentário