sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Caiu o Mundo

Tinha eu cinco anos quando o mundo me caiu em cima!

Isto é algo que acontece a todos, uma ou outra vez na vida, mas normalmente lá mais para a frente quando já se tem as costas mais largas, para aguentar, que o peso do mundo ainda é razoável.
Mas aos cinco anos, garanto-vos que é esmagador!

Eu tive a sorte de ficar em casa até chegar a altura de começar a escola.
Pude assim aprender a ler muito antes do tempo a isso destinado e tive acesso a um manancial de informação que me veio a acompanhar pela vida e que jamais lamentarei.
Os dias eram passados em brincadeiras com as minhas irmãs e miúdos vizinhos do prédio da nossa infância, onde, à minha medida, se desenrolava um mundo proibido à estatura adulta, onde nós, os putos, nos movimentávamos com ligeireza, as despensas escuras, armários, cestos de roupa suja e lavada, baixos da cama e de mesas e, a minha "casa" mais querida, a parte inferior da máquina de costura Singer da Tia Lucinda.

Foi debaixo da velha Singer que aprendi a ler.
A Tia Lucinda ia acompanhando os meus progressos na aventura das letras enquanto alinhavava, tirava pontos, mudava botões e colchetes, enfim, costurava, que era actividade diária numa casa, nesse tempo em que não tinha ainda sido inventado o pronto-a-vestir e em que toda a roupa era feita.
A mais fina, de sair, fazia-se no alfaiate ou na modista, as mais simples e os arranjos, faziam-se em casa, onde todos os dias havia fundilhos ou joelheiras para pôr, punhos e colarinhos para "virar", baínhas, remendos, cerzidos, transformações, passagens de roupa entre os irmãos que iam crescendo e de pais para filhos, numa cultura de aproveitamento, reparação e reciclagem que hoje nos é totalmente estranha num sistema organizado para o "usa e deita fora".

A costureira de serviço era a Tia Lucinda, que além das habilidades normais numa costureira caseira da época, sabia ainda "cortar calças de homem", tarefa só ao alcance de algumas iniciadas.
De manhã, antes de iniciar as tarefas de costura, havia normalmente uma espécie de reunião com a minha mãe onde se discutiam as prioridades e opções em relação ao que se faria a cada peça.
Eu ia ouvindo tudo, lá no meu esconderijo secreto, sobre o pedal da máquina, ao lado da grande roda metálica por onde passava a correia de couro que transmitia o movimento aos maquinismos, lá em cima, nessa altura ainda não tinha sido instalado o motor.

O universo era pequeno numa casa.
Se se falava ali do "rapaz", claro que era eu, o único macho que ai vivia durante o dia, além de que ao meu pai ninguém se atreveria a tratar por "rapaz".
- O que é se faz então ao rapaz?- perguntou a minha tia, casualmente, no meio da conversa de costura com a minha mãe - O melhor era cortar-lhe as pernas - respondeu candidamente a minha mãe, achando que era o melhor destino a dar a umas calças a que eu tinha rasgado os joelhos, transformando-as em calções.

Rapaz era eu e pernas são pernas! Aterrado perante a medonha transfiguração da minha própria família protectora nos mais malvados carrascos, senti pela primeira vez o horror, o pânico, o que sente o porco na mesa de matança ao ver a faca, a minha tia de tesoura na mão... chorei de pavor e impotência perante o ar aparvalhado da minha tia e da minha mãe, a pensarem que me havia entalado na grande roda de ferro ali ao lado.

Isto deu história para uns dias e, anos depois ainda se contava como coisa curiosa, mas o mundo nunca mais foi o mesmo para mim, a confiança cega morreu ali para sempre e nunca, mas mesmo nunca mais, voltei a brincar debaixo da máquina de costura Singer, uma armadilha mortal no quarto de costura.