Na casa da minha infância chamava-se Pastelão e umas vezes era de batata, outras incluía restos de bacalhau desfiado em lascas. Nunca soube o porquê do inusitado baptismo, tanto mais que tinha sido aprendido pela minha mãe numa viagem ao Sul de Espanha, há 53 anos, viagem em que, supostamente, eu fui “feito”.
Só depois de adulto é que percebi que o “pastelão” da minha mãe era afinal a famosa Tortilla Espanhola, e feita rigorosamente segundo o preceito seguido no Sul, de onde a Tortilla é originária.
Como a maior parte dos pratos de ovos, normalmente classificados com uma singela estrelinha no que se refere a dificuldade, a sua execução é extraordinariamente simples se se pretender uma tortilha vulgar, omoleta de batatas, daquelas que se despacham quando só há 10 minutos para ficar pronta. Mas há as “outras”, claro; aquelas que só conseguimos comer lá, em Espanha, e das quais dizemos que têm de ter qualquer segredo que as transforma naquela maravilha cujo cheiro inunda a rua e nos obriga a entrar e comer uma “tapa”, “racione” ou até um “pincho”.
Respeitado como um quase-símbolo nacional, nenhum espanhol considera a Tortilla um prato rápido ou fácil. Pelo contrário, sabem que a sua perfeita obtenção é fruto de muito treino e rigor. O Rei D. Juan Carlos, adepto confesso de tortillas, quando está no Sul de Espanha, vai de propósito, anónimo, a Málaga, comer uma tortilla feita por uma espanhola particular, senhora já de idade e que , segundo o Rei, faz a melhor tortilla de Espanha. Deixarei aqui o preceito exaustivo dessa tortilha, obtido dessa senhora por interposta amiga. Com ele, seguindo sem qualquer transigência todos os passos indicados, todas as quantidades, tempos e temperaturas, poderá obter uma verdadeira “Tortilla do Rey”.
Ingredientes:
500g de batata
1 cebola branca, grande
3 dentes de alho
Azeite virgem
6 ovos
Sal e pimenta
Preparação:
Descasque e corte as batatas em falhas, que se obtêm cortando uma cunhas finas a partir da periferia para o centro, começa o corte da grossura de um lápis e acaba fininho lá para o meio da batata. Descasque e corte a cebola do mesmo modo. Pique os alhos muitíssimo fino.
Numa frigideira ponha estes três ingredientes, misturados e acamados, tempere com sal e pimenta, cubra-os (literalmente) de azeite e leve a lume forte. Assim que começar a borbulhar, baixe o lume para o mínimo e deixe cozer no azeite, sem mexer. ( Se fosse hoje dir-se-ia que se estava a confitar)
Quando a batata está quase completamente cozida no azeite, e é mesmo cozida, sem qualquer vestígio de alouramento ou fritura, (vê-se quando a parte mais fina das “falhas” se começa a desfazer), retire com uma escumadeira para uma tigela e guarde o azeite. Este azeite, que nunca chegou a fritar, e que por vezes é mais de um litro, pode e deve ser aproveitado para futuras tortilhas ou outros cozinhados.
Bata os ovos com um pouco de sal e pimenta e junte-os à batata. Envolva mas não mexa demais, para a batata não se tornar um puré.
Volte a pôr na frigideira algum azeite, do que utilizou para a cozedura das batatas, mas só 3-4 colheres de sopa, deixe aquecer moderadamente e vaze a massa da tortilha para a frigideira. Deixe fritar.
Alguns minutos depois chega-se a uma fase crucial da execução: a parte de cima está completamente líquida mas a parte encostada ao fundo da frigideira já está frita. Então, com uma espátula de madeira ou colher de pau, revolva sem dó toda a tortilha, que parece ficar um caos, toda desfeita. Esta operação destina-se a levar partes fritas para o interior, reduzir o tempo de cozedura e deixar a necessária humidade cremosa por dentro que caracteriza as grandes tortilhas, que não devem ser secas como um pudim de batatas nem ficarem a escorrer por não estarem cozinhadas por dentro.
Após esta mexida, ajeite com a colher os bordos da tortilha, levante um pouco mais o lume e deixe então fritar o lado de baixo, agitando a frigideira um pouco, de tempos a tempos, para deixar uma fritura uniforme. Quando o primeiro lado está frito, o que se nota pelo aroma de ovo frito, pelo ruído de fritar e pela espuma que se forma nos bordos, há que virá-la. Arranje uma tampa (melhor por causa da pega), ou um prato de rebordo baixo, maiores que a frigideira, deixe a tortilha deslizar para a tampa, como se estivesse a servir para uma travessa, escorra bem o resto de azeite quente para cima da tortilha, tape-a com a frigideira invertida e volte o conjunto sem hesitações. Já está!
Ponha de novo ao lume, agite a frigideira em movimentos circulares enérgicos para que os bordos se componham e deixe fritar um pouco com lume esperto. Este segundo lado é que vai decidir do grau de humidade interna, pelo que não deve ser muito demorado. Assim que estiver louro retire para papel absorvente e sirva morno, que é a temperatura em que melhor mostra todo o seu encanto.
Notas:
Noutras regiões de Espanha, junta-se salsa picada aos ovos; eu adoro com coentros, mas sou suspeito pois na verdade adoro coentros em tudo.
Uma das maneiras mais sofisticadas de comer Tortilla e que transforma o acto num verdadeiro exercício gourmet, é acompanhá-la com Allioli, um molho catalão mas cujo uso se estendeu por toda a Costa Brava . Pode preparar o Allioli, esmagando 4 ou 5 dentes de alho com um pouco de sal, juntar uma gema de ovo e com a varinha na velocidade baixa, bater e juntar uma chávena com azeite e óleo, fazendo uma espécie de maionaise de alho, forte. No fim junte um pouco de sumo de limão e coma os pedaços de Tortilla morna com um pouco deste delicioso molho
quinta-feira, 15 de maio de 2008
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5 comentários:
Tenho um tio espanhol de Valadollide que me ensinou a fazer a dita tortilha.Bastante diferente da sua.Não posso mexer na dita e tenho uma tampa própia que comprei lá para virar a dita.Tenho que fazer e postar.Mas que não há duvida é que tortilha feita de que maneira for é uma delicia.
Gostei bastante do seu jeito poético de descrever o modo de preparo!!
No meu blog tenho uma receita de tortillas de trigo, para serem servidas com fajitas! Abraços e parabéns pelo blog!
Mauricio Tocci
http://melhordacozinha.blogspot.com
O meu avô materno era espanhol e um grande mestre cuca... Nunca mais comi tortilhas como as dele...
Obrigada por mo ter feito recordar.
Um amigo meu de ascendencia andaluza faz uma tortilha bastante parecida com essa; infelizmente nunca consegui fazer uma com este grau de requinte.
Confesso que esta depende de uma abilidade especial,para fazê-las e isto ainda não adquiri.
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