quarta-feira, 5 de agosto de 2009

O Curto-Circuito

Um dos meus primeiros livros da infância, que ouvi mesmo antes de saber ler e depois li com o deleite das coisas novas e mágicas, foi “O Longo Inverno”, de Laura Wilder, um dos livros que depois daria origem à série “Uma Casa na Pradaria”.
Hoje, quase meio século e algumas centenas de livros depois, o que recordo desse Longo Inverno são episódios desalinhados, porventura os que terei vivido com mais intensidade, a lenha feita de palha torcida, a expedição de trenó em busca do comboio das sementes, a predição do Inverno terrível por um velho índio, a moagem do cereal num moinho de café e, claro, o roubo de trigo por um buraco na parede, a uns irmãos em casa de quem, no meio da fome geral, se faziam enormes pilhas de fumegantes panquecas!

Estas panquecas que eram ilustradas com um desenho por demais elucidativo, tornaram-se num mito que a minha mãe tentava emular em vão, fazendo os mais variados crepes mas nunca “aquelas” suculentas e fumegantes panquecas.
Só em adulto, muitas experiências frustradas pelo meio, já com a mordomia do anti-aderente à disposição, cheguei finalmente às panquecas perfeitas, ou seja, as panquecas do Longo Inverno.

Depois de ter ido viver no monte alentejano, estas panquecas tornaram-se muitas vezes no pequeno-almoço de Domingo, para toda a família.
Foi num desses domingos, enquanto preparava a massa fofa das panquecas, que ouvi distintamente esse inconfundível ruído seco e inquietante de um curto-circuito!
O ruído vinha do exterior, crepitante e irregular, intenso e ameaçador quando se vive no campo e por todo o lado há árvores e ervas secas.
Parei o trabalho culinário, saí para descobrir a origem e depressa percebi que só podia vir do poste eléctrico que sustenta o fio que atravessa o olival, aliás o único sítio onde passava electricidade naquele campo todo.
Não havia dúvida que estava perante uma grave emergência e havia que agir: um telefonema para a Companhia foi o suficiente para convocar o piquete e, durante a hora seguinte, claro que mais ninguém pensou em panquecas, só se tinha ouvidos para o misterioso ruído que nos ameaçava as árvores, a casa, quiçá a vida.

Finalmente, lá chegaram os técnicos, com o humor de quem foi acordado ao Domingo de manhã e mandado ir atrás-do-sol-posto.
- Atão onde é esse curto-circuito? – lá perguntaram à saída do jipe.
- Ali mesmo no poste, ouve? – disse eu apontando a coluna de cimento – tem estado toda a manhã a fazer este ruído.
Os dois homens do piquete entreolharam-se de um modo intencional que eu detectei logo, não sou nenhum parvo, e que interpretei como uma confirmação da minha inquietação e dirigimo-nos todos para junto do poste.

Então, quando estávamos talvez a cinco metros do objectivo, o ruído parou!

Desastre! Era pior que estar na cadeira de dentista e já não saber qual o dente que lá nos levou ou na oficina e o carro ter desistido daquele barulho que esteve a semana toda a fazer… - parece que parou, bom, mas os senhores ouviram bem… agora mesmo estava…- fui dizendo muito enfiado enquanto um dos tipos calçava uns estranhos artefactos de subir a postes, com um ar de peru em véspera de Natal e ia dizendo - na verdade não ouvi nada, mas vamos lá cima ver bem, esteja descansado.
O homem lá subiu o poste com uma agilidade símia, viu, voltou a ver e, finalmente, no silêncio da manhã alentejana, irrompeu de novo o ruído! – Vê? Ele aí está outra vez! – gritei eu, vitorioso.
- É este o barulho? – pergunta lá do cimo o homem-macaco da EDP – Ah! Bom… e desce num instante, sorridente por fim – Não é nada, não se preocupe, só lhe peço que ponha aqui uma assinaturazinha na folha de obra, se fizer o favor.
A folha de obra é o documento que justifica perante a burocracia deles a vinda até aqui e é constituída por três cópias, das quais eu tenho direito a ficar com a última, depois de garatujar uma assinatura no sítio que me indicaram.
Fiquei quase com pena de os ver partir.
É que agora tinham-se transfigurado: as figuras taciturnas de há um quarto de hora eram agora alegres, risonhos, quase hilariantes camaradas que estive para convidar a provar uma panqueca à Longo Inverno, não fosse já tão perto da hora de almoço. Lá se foram, não sem antes me lançarem um olhar amigo que não mais esquecerei.
Enquanto o jipe se afastava devagar, dei uma vista de olhos à folha de papel que me tinham deixado. Lá estava o “motivo da chamada”, curto-circuito exterior e, mais abaixo, na linha assinalada como “Anomalia reparada”, cigarra a cantar!

Nunca pude apurar se os solavancos que o jipe dava ladeira acima, eram fruto dos acidentes do caminho, se das gargalhadas que certamente iam lá dentro.

Comemos as panquecas ao lanche. Fi-las assim e estavam uma delícia.

Ingredientes:

3 ovos
3 colheres de sopa de açúcar
1 chávena de farinha com fermento
1 pitada de sal
50 ml de natas
1 colher de sopa de óleo
Leite q.b.

Preparação:

Separe as claras e bata as gemas com o açúcar até obter um creme esbranquiçado e liso.
Junte a farinha, natas, óleo e cerca de uma chávena de leite e bata tudo com as varas de claras. A consistência deve ser mais líquida que uma massa para bolo e menos líquida que massa para crepes.
Junte por fim as claras batidas em castelo firme com o sal.
Frite numa frigideira de crepes, vire com o auxílio de espátula e sirva quente com o que mais gostar, manteiga, mel, queijo, compota, chocolate fundido, etc.

5 comentários:

anna disse...

Estava cheinha de saudades de uma boa história bem contada...
Nunca fiz panquecas!
Boas férias!

turbolenta disse...

Gostei deste belíssimo conto.E com este imenso calor, devem cantar que se fartam.Curiosamente, ainda nestas últimas férias e com uma temperatura de quase 40º, a minha filha, ao subir a uma igrejinha me perguntou: " mãe....que barulho é este?"
E se elas cantavam...
Quanto às panquecas: um belo pequeno almoço dominical e não só.
Casualmente ando há imenso tempo para estrear uma maquineta que comprei ,própria para elas.
Quase que garanto que a receita é óptima. Mas, pelo sim,pelo não........o melhor mesmo é fazê-las na frigideira anti-esturro.
bom fim de semana
Com muito cantar de cigarras.

Tiago Lopes disse...

Gostei de sua historia....e da receita também..desafio-o a comentar minhas receitas em meu blog gourmet..abraço e boa continuação

ana_coisasdecozinha.blogspot.pt disse...

já li alguns contos que aqui escreve,misturando-os com coisas boas para o estômago.parabéns pelo blog...tem interesse e dá prazer passar por aqui...pq além da originalidade sabe bem recordar tempos passados que (pela idade serão idênticos)...e os cheiros que nos ficaram das boas coisas que tivémos acesso????parabéns e saúde para desfrutar coisas boas!

Mafalda Ofélia disse...

Também li todos os livros da Laura Ingals Wilder. Era louca por eles. Temos quase a mesma idade. E a neve de açúcar? E aí eu quiz açúcar de bordo, mas aqui não tinha naquela época. E as panquecas? Aquela pilha de panquecas que a mãe do Almanzo fazia!! Só fui comer umas a contento quando fui aos Estados Unidos... Também aí tinha em qualquer lugar, as melhores do mundo, em qualquer Mc Donald até... Voltei cheia de receitas de fôfas panquecas e garrafinhas de maple syrup... Deleite total... O meu sonho agora é ir a uma cabana de açúcar no Canadá... Mas tem época certa, e quando eu fui estavam fechadas... E tudo por causa de Laura Ingals Wilder...