sexta-feira, 11 de abril de 2008

CINZENTO ( Licenças de Isqueiro, ASAE, Bufos e Sobremesas)

Eu vou andando para velhote, até já falo deste blog como um testamento, mas felizmente não sou dos que acham que no "seu" tempo é que era bom ou que a juventude de hoje está perdida (diz-se sempre "de hoje", como se houvesse outra).

Na verdade, a observação atenta das pessoas de várias gerações a que a minha profissão obriga, tem-me levado cada vez mais à conclusão que a velhice é uma fatalidade bem mais trágica para as novas gerações que para os velhos propriamente ditos.
É que a idade refina bem mais os defeitos do que apura as virtudes e o mitos do "bom velhote" ou da "sabedoria da idade", não passam disso mesmo: Mitos!

Há um único aspecto em que a idade pode ajudar: A Memória.
Apesar de tender ao esquecimento e à imprecisão, quem já tem uns anos consegue um trabalho de avaliação comparativa impossível sem essa referência memorial.

É esta, de algum modo, a contribuição que pretendo fazer com estes escritos; não sou professor, nem sequer cozinheiro que se possa comparar com alguns/algumas dos que se dão ao trabalho de me visitar, não acho sequer que a cozinha da minha memória seja superior às actuais (viva a Nouvelle Cuisine!), mas acho importante que possa funcionar como referência, principalmente nestes dias algo tristes em que, de uma maneira despreocupada e leviana, se assiste a um deslizar assustador para a zona do CINZENTO !

A vantagem de ter uns anos a mais é que já se viveu em tons de cinzento!

Já se coexistiu com as Licenças de Isqueiro, os seus execráveis fiscais e os ainda mais execráveis bufos, que denunciavam os faltosos contra uma comissão de vinte e cinco tostões (+/- 1 cêntimo).
Já se viveu o dia a dia de um país onde as mulheres tinham de ter permissão do marido para irem a Espanha e em que os filhos de mães separadas, portanto não casadas com o actual companheiro, se queriam ter o apelido do pai, tinham de ser de "mãe incógnita".
Já se viu, nas praias, Cabos de Mar arvorados em polícias de costumes, a medir os centímetros de pele descoberta para levantarem o auto.
Já se viveu num país onde o azeite puro foi proíbido durante anos a menos que misturado com óleo, só porque um ministro qualquer queria escoar a produção dos seus campos de amendoim angolanos.

Isto era viver a preto e branco, ou antes, viver cinzento. Não foi bom, mas constituiu-se memória e referência.

Hoje, é importante que essas memórias possam ser evocadas quando vemos a nossa vida completamente devassada por dispositivos escondidas, cruzamento informático de dados pessoais, investidas da ASAE, qual Swat Team (SWAT significa Special Weapons and Tactics!)de um qualquer mau filme de acção americano contra as tradicionais cozinhas onde se preparavam delícias de antanho que nunca mais poderemos provar.
Hoje, é importante que se perceba que estamos a ser conduzidos de novo para o temível cinzento do descaracterístico, do asséptico, do normalizado, do bitoque.

É para isso, só para isso, que a idade e a sua memória podem ser importantes.

É importante que alguém lembre que ainda há três anos podíamos provar os magníficos queijos amarelos do Ladoeiro ou da Zebreira, nas suas caixas de madeira rodeados por palha e que hoje resta o queijo higiénico e normalizado pela Cooperativa Queijeira de Idanha-a-Nova, bom sem dúvida, mas desesperantemente igual a si próprio.

Reparei ontem que neste blog quase não tenho abordado doces e sobremesas. Bolos até nem há nenhum! Percebi então que essa vertente das minhas memórias estava mais ligada a grandes obras de doçaria feitas fora da cozinha caseira e que, pior, algumas podiam até estar em vias de extinção.
Será que a pequena cozinha onde se fazem os melhores pastéis de feijão do mundo, da Fábrica Corôa em Torres Vedras, passou ou passará o "exame" de uma polícia que já fechou as Amêndoas de Portalegre, só por ser pequena?
Será que as cozinhas de ovos moles de Aveiro ou da Pastelaria Horta de Viseu, poderão sobreviver num futuro próximo, tendo em atenção que a delicada operação de esvaziar as gemas e retirar a película, só se pode fazer com dedos não enluvados?
Teria passado o crivo "inox" da ASAE a cozinha do Convento de Santa Helena do Calvário, em Évora, graças à qual podemos ainda hoje provar esse monumento renascentista da doçaria mundial que é o Pão de Rala?

O nosso futuro dependerá tão só da capacidade que tivermos, enquanto cidadãos, para lutar contra o imenso polvo do cinzentismo reinante e essa é uma luta que precisa da força e da generosidade da juventude. Por mim, vou lembrando, vou comparando.

Pelo sim, pelo não, vou dedicar os próximos dias a esses tesouros em perigo da doçaria portuguesa, alguns conventuais, outros simplesmente feitos por empresas e pessoas que se dedicaram, amorosamente, a tornar as nossas vidas mais doces.

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6 comentários:

risonha disse...

vou ficar ansiosamente á espera das próximas postagens dedicadas aos doces da nossa fantástica cultura.
e gostei de ler a história das licenças dos isqueiros, pois é uma coisa que sempre me lembro de ouvir o meu falecido pai falar.

Moira - Tertúlia de Sabores disse...

Sei que não é relevante, mas não posso deixar de dizer que concordo consigo! Fico a aguardar, com ansiedade, as próximas postagens, até porque estão lá alguns dos clássicos que eu adoro.

anna disse...

Mal posso esperar pelas delícias que aí vêm, tipo ovos moles e pão de rala.
Vão ser todas com aqueles pontos de açúcar dificeis de conseguir, pelo menos para mim... lol!
Mas vou adorar a forma como as vai descrever, isso é certo!

anna disse...

Quando puder, passe no meu blog, ok?
Tem lá 1 miminho... mesmo que o LPontes não ligues a estas coisas, eu acho que o merece!
Beijo.

diogo disse...

E vamos aproveitando enquanto a ASAE não tem jurisdição em nossas casas . Aliás , um bom negócio , será vender pastelinhos de bacalhau aos vizinhos , qual lei seca ... calculo que venha a triplicar de valor . Um abraço

Mónica Pinto disse...

Gostei muito deste seu texto. Muitas vezes me pergunto, o que pensará a Asae da deliciosa boroa de milho e centeio, cozida nos fornos de pedra do norte do nosso país, cujas portas são vedadas com bosta de vaca, para que o calor não se perca, durante a cozedura. E espero, sinceramente, que nunca se perca o que demorou séculos a conquistar. É bom ver que aprecia e defende a nossa cozinha tradicional, tão rica e tão cheia de histórias