sábado, 10 de maio de 2008

Bacalhau à Brás ( História Triste de Um Crime)

Ao falar das 103 maneiras de preparar bacalhau descritas no seu “Pantagruel”, Jorge Brum do Canto diz que existem mais maneiras de fazê-lo do que escamas o bicho tem e do seu “direito a senhoria” na cozinha Portuguesa. É bem assim!
Séculos de apuro e convivência íntima com o Gadus morhua, fizeram dos cozinheiros e cozinheiras deste canto do mundo especialistas incontestados na arte do bacalhau. Esta coroa não serve, porém, só para enfeitar a testa da Cozinha Portuguesa; ela gera responsabilidade, mais que não seja na conservação desse imenso património gastronómico, cultural, construído no dia-a-dia das cozinhas anónimas de todo um povo, durante gerações.

Vou hoje, aqui, falar-vos de um crime hediondo que se passou bem à nossa volta, de que fomos cúmplices, nem que fosse por omissão de denúncia, e que devastou a riqueza sápida de um dos mais exigentes pratos de bacalhau: O Assassínio do Bacalhau à Brás !

Até há bem poucos anos, quinze ou vinte no máximo, o Bacalhau à Brás era um prato maior da cozinha da Estremadura, figurava nos cardápios dos melhores restaurantes da capital, ombreando com os maiores exemplos da Grande Cozinha. Era vulgar que fosse servido em banquetes de recepção a reis e presidentes estrangeiros quando nos visitavam. Era uma experiência que não se esquecia!
Depois, num dia triste qualquer, um qualquer também triste cozinheiro apressado, descobriu as batatas fritas palha, de pacote, achou por certo que tinha descoberto a pólvora e transformou alegremente o Bacalhau à Brás no “hamburger” do bacalhau.

Fazer qualquer coisa “à Brás” passou a ser sinónimo de coisinha rápida e prática, uma espécie de “fast food” caseiro, o Bacalhau à Brás assim abastardado invadiu tudo, teve mesmo honras de apadrinhamento por grandes nomes da nossa cozinha mais mediática, e, consequentemente, desapareceu dos sítios onde era oferecido a apetites mais exigentes e menos dados a tais popularidades.

Deixo aqui, como modesto contributo para a memória deste delicioso monumento da nossa Cozinha, o preceito para a execução do Bacalhau à Brás da minha juventude, fixado por Maria de Lourdes Modesto na Cozinha Tradicional Portuguesa.

Ingredientes:

400g de Bacalhau
500g de Batata
6 Ovos
3 colheres de sopa de Azeite
3 Cebolas
1 dente de Alho
Salsa
Sal e Pimenta
Azeitonas Pretas de cura natural
Óleo para fritar

Preparação:

Retire a pele e as espinhas ao bacalhau previamente demolhado. Esta operação pode ser muito facilitada se escaldar brevemente o bacalhau, vertendo sobre as postas água bem quente e deixando o bacalhau nesta água alguns segundos.
Desfie o bacalhau com as mãos e reserve.
Prepare então as batatas, descascando-as e cortando-as em palha. Cortar em palha é cortar em palitos com cerca de 3 milímetros de lado, nunca mais. Frite estas batatas em óleo quente e retire-as assim que começam a alourar, o que é rápido. Reserve-as.
Pique o alho muito fino e as cebolas em rodelas finíssimas e refogue lentamente em lume médio, num tacho de fundo espesso, até a cebola estar cozida e transparente.
Junte então o bacalhau desfiado e mexa para que fique bem envolvido com a cebola e o azeite.
Junte então as batatas ao bacalhau e, com o tacho sobre o lume baixo/médio, acrescente os ovos batidos e temperados com sal e pimenta. Mexa com uma colher ou garfo de pau, continuamente, até o ovo se tornar cremoso, mas cozido. Passe imediatamente o cozinhado para uma travessa fria, para que a cozedura não continue. Salpique com salsa picada e sirva logo.
Acompanha-se com azeitonas pretas miúdas, ditas “galegas” e curtidas pelo método tradicional. Não use as modernas azeitonas pretas grandes e redondas, com o interior acinzentado pela curtimenta química.

Nota:

Deguste com a “devoção” que este prato merece, recorde as papas de ovo abatatado e engordurado que seguramente tão bem conhece, perceba porque não pude deixar de falar em “crime”!

7 comentários:

risonha disse...

depois de ler a história do crime, até me sinto envergonhada por daqui a dias ir postar umas "pérolas do mar à brás"....
acredito que os cozinhados feitos á moda antiga fossem muito melhores, mas por vezes o pouco tempo que temos no dia a dia leva-nos a cometer estes "crimes".

de qualquer modo, para mim é sempre um prazer ler os seus textos, acho que tem uma grande sensibilidade para a escrita.

cupido disse...

Claro que não é preciso elogiar a descrição (são sempre brilhantes, que se há-de fazer?), mas como chato que sou, tenho que referir um pequeno pormenor... onde se lê óleo para fritar, leia-se azeite. Parece-me que "acarinha" melhor os ingredientes.

Isabel Salvador disse...

execelente blog com histórias muito maravilhosas...parabéns.........

Adriana disse...

Isto faz a gente pensar um pouco!

turbolenta disse...

Tem razão. Este prato quase desapareceu dos restaurantes e quando aparece, vem de tal modo adulterado pelas tais batatas palha fritas de pacote, que fica intragável ao comer.Casualmente também cá em casa quase caiu em desuso. E porquê? por dar um certo trabalho, por ter batatas fritas e ficar mais gorduroso. Enfim...não há desculpas mas ele "deixou" mesmo a minha cozinha.
Mas nos últimos tempos, misturava ao ovos batidos uma chávena de leite. Não ficava tão oleoso.
boa semana

Bosque de sonhos disse...

Parabéns pelo gosto e preocupação da verdadeira cozinha tradicional
É assim que sempre fiz o meu bacalhau à Brás e há-de continuar a ser... mas com azeite.
Aproveito para lembrar outro crime... batatas pré-fritas. Que horror!
Por último, parabéns pelo bom português. Começa a ser escassa uma leitura de qualquer artigo em bom português... e tanto se esforçou Camões.

José Cardoso disse...

Concordo plenamente, além de crime e uma autentica violência a cozinha tradicional portuguesa...........Bom apetite.