terça-feira, 27 de maio de 2008

Cozido

Se para se ser gourmet é necessário desprezar o Cozido à Portuguesa, então "abaixo os gourmets, agora e para sempre!". De há uns tempos a esta parte, passou a ser moda entre alguma malta mais "gourmet fashion" (mais faxon que fashion), citar o bom e velho Cozido como exemplo de comida boçal e sem classe. Claro que sendo o Cozido um prato absolutamente transversal a todas as regióes e classes sociais portuguesas, incluindo o temível Povo, essa gente que normalmente até vem precisamente do povo mas que, depois de incluir algum "y" e duplicar umas consoantes no velho nome de baptismo, passa a vida a ocultar as verdadeiras origens e a cultivar uma nova biografia mítica, não podia deixar de renegar aquele prato tão igualitário quanto delicioso. Faz-me lembrar as célebres churrascadas de fim-de-semana, em Fontanelas, de um dono de restaurante macrobiótico, a renegar as profissionais agruras de arroz integral de Segunda a Sexta!
O Cozido à Portuguesa é a festa feita prato! Desde o cozido de carnes fumadas de Trás-os-Montes, ao comido com pão, todo desarrumado e com grão, no Alentejo, todos os cozidos partilham algo de indefinido mas suficientemente forte para que um Cozido à Portuguesa não tenha qualquer possibilidade de ser confundido com qualquer dos outros que existem por esse mundo fora.
Não há dois cozidos iguais: cada família transporta o seu arquétipo e transmite-o à geração seguinte, com ou sem alterações, como se de um gene se tratasse.
Na minha família, o Cozido é assim:

Ingredientes:

Carne de Vaca (peito, maçã do peito, chambão) 150g por pessoa
Orelha de porco, 1/2 por pessoa
Chispe, meia unha por pessoa
Entrecosto, 150g por pessoa
Toucinho entremeado mas gordo, 150g para 6 pessoas
Frango do campo, 1/8 por pessoa

Chouriço de carne artesanal, 1 para 6-8 pessoas
Farinheira da Beira
Chouriço de Sangue fresco (negro avinagrado)
Morcela

Couve Tronchuda Portuguesa
Lombardo ou Repolho (coração)
Batata média, 1 por pessoa
Cenoura, 1 por pessoa
Nabo, 1/2 por pessoa
Feijão Catarino ou Feijoca (cozido de Inverno)
Feijão verde (cozido de Verão)

Arroz Carolino
Sal
Hortelã

Preparação:

Use carne de vaca ou novilho, animal adulto.
Coza a carne de vaca durante 25 minutos na panela de pressão, com sal e água abundante. Deixe sair toda a pressão, abra, retire um pouco da água para um tacho pequeno, e introduza na panela de pressão as carnes de porco, toucinho e chouriço de carne. Tape e leve a cozer, com pressão, mais 35 minutos. Entretanto, ponha no tacho a morcela, o chouriço de sangue e a farinheira previamente demolhada em água fria durante uma hora, todos furados com um palito aguçado, a cozer em lume brando e tacho destapado, durante cerca de 10 minutos, vigiando para prevenir qualquer rebentamento.
Quando as carnes estiverem cozidas, abra e misture o caldo onde cozeu os enchidos. Retire então a quantidade necessária para fazer o Arroz de Sustância, que deve incluir alguma ôlha das gorduras sobrenadantes. Guarde as carnes e enchidos na panela tapada e passe o caldo para a panela onde vai cozer os legumes.
Comece pelas cenouras, couve portuguesa e nabos, deixe ferver 5 minutos, introduza então as batatas, o frango, uns ramitos de hortelã e o lombardo ou repolho e deixe cozer mais 15 minutos. Por fim, se está a fazer o cozido de Verão, ponha o feijão verde atado num molho, os últimos 5 minutos.
No cozido de Inverno junte no fim os feijões cozidos à parte, a menos que queira fazer um cozido chamado "de feijão" em que este é cozido com as carnes mas que deixa um tom acastanhado no resto dos ingredientes.
Entretanto ponha o arroz a cozer no caldo que reservou. Este Arroz de Sustância deve ser feito com um pouco menos de líquido que o dobro do arroz, retirado do lume antes de pronto e deixado a acabar fora do lume, tapado, de modo a ficar perfeitamente seco e solto.
Sirva a travessa dos legumes, escalde com o caldo destes as carnes que ficaram na panela, enquanto põe o arroz noutro recipiente, por fim sirva as carnes e enchidos partidos às rodelas numa segunda travessa.

Nota:

O caldo que sobra de um cozido, coado ou não, sobre umas fatias de pão duro e com uma folha de hortelã fresca no prato é uma experiência quase mística, de que não deve prescindir.
Claro que este é o Cozido de festa, o preceito excepcional; no dia-a-dia há coisas que não se pôem, tudo fica mais simples (e digerível) mas nem por isso menos aliciante.
Um dia destes publicarei um Cozido Pobre!

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15 comentários:

colher-de-pau disse...

Devo dizer que um bom cozido à Portuguesa, com carnes nbem temperadas no sal uns dias antes, e bons enchidos, é dos meus pratos favoritos!

risonha disse...

gosto muito deste prato... que me desculpem se sou saloia.. eh eh eh!
e gosto de aproveitar o caldo e os restos de carne para fazer uma saborosa sopa do cozido.

janeca disse...

Luis Adorei o seu cozido,é tb da mesma forma que o fazemos cá em casa,assim como a sopinha do cozido,só não ponho o pão mas cozo uma massinha no caldo com algumas couves que sobram sempre.

Tem toda a razão á que manter a nossa boa "cozinha portuguesa"

turbolenta disse...

Mas que rico cozido à POrtuguesa!
Adoro comê-lo, mas raramente se faz cá em casa. Não é que não haja um grande panelão por estas bandas, mas não é comida que se possa fazer senão para um rancho de gente. Por isso, quando finalmente as pessoas se reunem e o cozido aparece....desaparece logo.

PS: neste fim de semana não porque vou para o Alentejo, mas no próximo devo experimentar a tal receita. A ver vamos se atinamos bem com ela.É que a minha sogra, infelizmente, já cá não está para dar a receita original.
boa semana

Marizé disse...

Nada me receonforta o estomago como um bom cozido.
Na refeição seguinte "regalo-me" com o caldo onde apenas hidrato couscous ou aletria com muita hortelã.

Baú da Conceição disse...

Gostei muito do seu cozido,é dos meus pratos favoritos.

Mónica Pinto disse...

Não podia deixar de comentar, quando se trata de cozido. Aqui em casa cultivamos a adoração do cozido. É um dos pratos mais apreciados . Gostei muito desta sua receita de família.

anna disse...

Fontanelas para mim é um nome carregado de significado: passei lá quase todos os fins de semana e férias, desde criança até adolescente... Fontanelas = Saudade!
Também sou grande fã de cozido nas suas variadas versões...

cupido disse...

Bem, antes de mais, percebo que alguns "grumetes" desvalorizem o cozido; não sabem comer e pronto. Alguns chefs tentaram transportar o cozido para a cozinha contemporanea; não coneçho nenhuma experiência que me tenha fascinado. Quanto ao resto, efectivamente, uma "salgadela" prévia nas carnes do porco melhora o sabor do prato e o cozido só o é efectivamente quando rodeado de pelo menos seis pessoas. Para finalizar, é um dos meus pratos preferidos e só tenho pena que os enchidos de grande qualidade sejam cada vez mais raros e caros.

anna disse...

Olhe Luis, do que eu me lembro mais em Fontanelas é do café do Zé e das petiscadas de caracóis, mexilhões e amendoins (uns de cada vez, claro)... e de ir de manhã bem cedo apanhar cogumelos, com a minha madrinha. E... etc. etc.
Obrigada pelo conselho sobre o polvo, vou comprar um para experimentar, quando for ao bacalhau...

Luís Pontes disse...

Quero agradecer a todos os que fizeram o favor de comentar este post, por sinal o mais comentado da minha curta "carreira".
Em relação à salga das carnes, claro que têm razão e eu faço-o em geral, hoje, principalmente no entrecosto.
Lembro, no entanto, que este é um sítio de memórias, não de preceitos, e as memórias, do mesmo modo que não podem ser objecto de fotografia, também não podem ser alteradas: são o que são!

LPontes

Anónimo disse...

O Cozido à Portuguesa, pela sua simplicidade em termos técnicos e riqueza no que diz respeito a sabores, é dos melhores pratos que conheço. Quem não gosta de Cozido não é filho de boa gente!! Este é um daqueles pratos onde as estrelas são os ingredientes puros, de boa qualidade, onde os sabores mantêm a sua essência. Para mim o supra-sumo do cozido é o caldo perfumado com uma folha de hortelã, com uma riqueza de sabores que apazigua a alma.

oquefazerprojantar??? disse...

VIVA o cozido!!!
E como cada terra usa uns enchidos diferentes... é quase impossível encontrar 2 iguais!
Que boa lembrança!

Chef Janvier disse...

Eu, que também sou alentejano como você, também aprecio muito o cozido. E mais ainda as "sopas da panela", esse prato alentejano com o sabor da hortelã no caldo.

E a sopa do cozido é para mim uma das melhores sopas que posso comer.

Unknown disse...

Luis, parabéns por seu "Livro de Memórias..." !! Lindo e delicioso!
Fiquei curioso...e com desejos de experimentar a Farinheira da Tia Lucinda... POderia me dar uma dica sobre a Massa de Pimentão - aqui no Brasil nunca ouvi falar dessa massa. - como fazê-la?
Obrigado pela sua atenção e por dividir com a gente suas tão saborosas "memórias"! um abraço,
J.Paulo