Aqueles pratos de que é costume ouvir-se dizer, faz-se "uns" ou "uma", como os bifes, a omoleta, ovos mexidos, no sentido de que são coisa simples e rápida, que qualquer um pode despachar num instante, correspondem geralmente a pratos que, pelo contrário, precisam de verdadeira sabedoria, experiência e tempo, para poderem ficar livres do miserável destino de comida de ocasião e ganharem todas a nuances que encerram mas de que são ciosos e libertam, só para alguns.
As açordas em geral e as de marisco em particular, são verdadeiros pratos de paciência; pratos do tempo em que havia tempo para cozinhar; do tempo em que não era estranho começar a preparar um jantar logo depois do almoço.
Uma açorda de marisco era algo de especial, algo que se encomendava. Ia-se longe para disfrutar as açordas do Tirano,em Alcabideche, da Solmar, ali ao lado do Coliseu ou no Serol de Armação de Pêra. Isto tudo, claro, era antes do tempo passar a ser importante para pôr de novo a mesa para o cliente seguinte e ter de mascarar a insipidez das açordas apressadas com um infame ovo misturado ali à mesa, com ares de grande culinária e que hoje até passou a ser considerado como parte integrante de uma açorda que, bem feita, precisará de tudo menos de um ovinho final.
Há já muitos anos que deixei de comer açorda de marisco em restaurante. Talvez desde a altura em apareceram à venda umas couvettes de plástico com uns sortidos mariscais já cozidos e congelados que até incluem ... "delícias do mar"!
Quando quero essa maravilha, arranjo tempo, marisco crú e vivo,os outros ingredientes tão simples, e faço-a. Bem feita, que é a única maneira de fazer uma açorda. Leva tempo, ainda bem.
Porque uma açorda de marisco é algo que tem de se merecer!
Ingredientes:
Mariscos Crús, se possível vivos.
Pão duro
Sal e Pimenta
Salsa
Alhos
Azeite Virgem
Tosta ralada moída até pó
Preparação:
Quase todos os mariscos servem para confeccionar uma açorda, da Lagosta ao Berbigão. Há poucas excepções, os Percebes, que perdem toda a graça, as Ostras, os Mexilhões e a Lambujinha, que podem fazer açordas fabulosas mas com um apuro técnico de confecção que não cabe no âmbito deste blog. Todas as combinações são possíveis e embora eu tenha horror a sabores destes, misturados, reconheço que há combinações muito felizes. Se na sua região consegue aceder ao fabuloso Camarão do Porto, ou de Espinho, não hesite: O simples facto de o incluir, fará o êxito da sua Açorda.
A cozedura do marisco crustáceo é uma operação crucial: Ponha água ao lume com sal e espere que ferva. Depois, com o lume ao máximo, introduza o marisco que quer cozer e que, se for adquirido congelado, deve ser completamente descongelado em água fria, antes de cozer. Tape a panela e espere que se comece a esboçar de novo fervura, mas antes da fase de cachão, apenas borbulhar aos lados. Apague o lume de imediato e aguarde, consoante a dimensão da variedade escolhida. Pode misturar espécies de dimensões aparentadas, apenas. Espere 1 minuto para o Camarão de Espinho, 4 minutos para o camarão médio/pequeno, 60/100, 7 minutos para o camarão grande, 30/40, ou para Lagostins, 12 minutos para Cavacos ou Lagostas/Lavagantes pequenas, 300/400g, e 20 minutos para Sapateira, Santola, Lagosta grande.
Os bivalves devem ser "abertos" em seco, com lume forte, e tirados do calor mal comecem a abrir as valvas, antes de endurecerem. Reserve o líquido que libertam.
Deve então descascar os crustáceos da forma habitual, reservando a carne e os "recheios" das carapaças no caso das Sapateiras ou Santolas.
Cascas e cabeças vão então de novo para a panela e sofrem uma cozedura que deve durar, pelo menos, 2 horas em lume mínimo. Durante este tempo a água fica mais salgada, por evaporação, pelo que deve pensar nisso quando temperar a água inicial. (Esse é o sal total que a açorda vai levar, pelo que é muito menos que o usado apenas para cozer marisco. Se quiser pode fazer a primeira cozedura em água mais salgada, depois rejeita metade antes de fazer a cozedura das cascas e acrescenta mais água).
Passe por um passador de rede fina e reserve o líquido.
Demolhe pão duro de trigo, em água abundante. Ao contrário das demais açordas, para esta o pão ideal é a carcaça da cidade, vulgo papo-sêco, ou a regueifa no norte. Evite pães muito consistentes ou de mistura.
Num tacho largo, confite alhos em Azeite Virgem com uma pitada leve de Pimenta, lentamente, com lume mínimo, retire-os antes de alourarem, levante então o lume e adicione o pão encharcado na água em que amoleceu. Mexa de forma contínua até começar a ferver de modo uniforme. Cuidado com os salpicos a ferver. Baixe o lume e continue a cozedura, adicionando aos poucos o caldo apurado da cozedura das cascas.
Ao fim de cerca de uma hora de cozedura e sucessivas adicções de caldo, a açorda está "lisa", isto é, não são distinguíveis na massa quaisquer vestígios do pão que a forma e adquiriu uma textura suave, translúcida e brilhante.
Incorpore então as partes moles de marisco de carapaça, se os está a usar, mexa e proceda ao ajuste final de consistência, que se faz juntando mais um pouco de liquido se estiver mais seca que o desejado ou pão moído em pó,(pode usar tosta ralada clara, reduzida a pó na 123), se no fim a achar demasiado líquida. Em qualquer dos casos, mexa bem, retire do lume, e adicione o marisco e Salsa picada muito fina. Envolva rápido e sirva de imediato.
Nota:
Tentei dar todos os pormenores, com o risco de ser repetitivo e exaustivo, mas nestes pratos de delicadeza tão acima do comum, todas as minúcias são importantes e fazem a diferença. No entanto´sinto que muito mais poderia ser dito sobre uma Açorda de Marisco bem feita: é que aqui não há meios termos, não existem açordas assim-assim, só as perfeitas e as más. Tentei descrever a minha Açorda que, apesar da aparente fanfarronice, não hesito em colocar no grupo das perfeitas. Se lhe surgir qualquer dúvida, mesmo pequena, pergunte-me. Este prato é um verdadeiro tesouro gustativo e será sempre um prazer partilhá-lo.
terça-feira, 11 de março de 2008
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5 comentários:
Repetitivo? Não. Uma descrição perfeita de um prato sublime.
Fiquei de água na boca só de ler.
Vou sem duvida pôr em prática, e constactar o óbvio: só pode resultar num prato digno de se fazer esperar.
Pois, essas tais "delícias" são simplesmente horrorosa. Não entendo que as usem no arroz ou na açorda de mariscos, realmente...
Gostei muito de ler esta descrição da forma, que acredito ser perfeita, para esta bela açorda...
Até fiquei com água na boca!
A minha é bem mais simples...
Então não leva ovo. Ou leva? Açorda é o meu prato preferido de cozinhar, dizia eu até ler isto. De facto nunca fiz uma açorda assim. Fiz antes aquelas que o senhor chama de más. Vou experimentar! Obrigado pelo ensino.
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